Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasAlexandria Carlos Morais José - 20 Jan 2022 Existe na cidade de Alexandria um Porto Interior. Fixa o Norte, de onde lhe veio o pai. Num dos seus extremos, alguém de novo ousou a Grande Biblioteca. Abundam livros e mulheres jovens. Pelo meio, sobre as praias, debruçam-se esplanadas, num excesso de mar. No outro extremo, passeia a desmesurada gente, talvez à espera do momento certo para voltar a pegar fogo a isto tudo. * Já Marte sobre o fim da cidade se levanta, mas nem por isso os homens sossegam e olham de novo o mar antigo. Pela urbe persiste o ruído, o caos que pouco cintila ou alcança. A cidade deixa à estrela esse castigo. E ela olha do alto e pouco vê, nada procura. Onde estão os épicos fantasmas da minha literatura? Ficaram os homens impuros e as suas mulheres cercadas. E as ruas belas como rugas ou trapos pisados nas calçadas. Na casa de Kavafis paira um odor a abandono. Apenas um refrão, sussurrado por um bigode. Escasseiam os livros e sobram as horas. Os versos lamentam a sorte rasa. Poemas dormem sem abrigo pelas ruas. Nada há para fazer, só para ver e os olhos humedecem da tristeza do que não é (talvez nunca tenha sido), a sentirem fundo a culpa de uma deslocada ambição. * Nos versos de Kavafis expirava o último heleno e talvez uma cidade. * Havia no lugar onde em 1902 foi construído o Hotel Metropole um obelisco de dois mil anos. Cleópatra impusera-o para celebrar Marco António. Agora existem sombras posteriores a marcar corredores, um elevador de três portas e as colunas solenes do átrio. — Ainda há onde respirar, rosno curto. Kavafis frequentava o Hotel Metropole. Não sei se unicamente a entrada, de onde se disfruta a rua em poltronas altas; se subia ao primeiro andar, e deslizava pelos salões, entre brandys, golpes de estado, charutos e revoluções. Provavelmente, pouco disso o interessava, como lhe deviam ser indiferentes os veludos e os pendentes adamascados. Imaginemos que, sem sabermos de quê, lhe interessava a possibilidade. Fantasiemos que esse quê poderia surgir, vindo da rua, sob a forma de um cavalo ou de um príncipe, ainda pingentes de suor de um galope ou de múltiplas defenestrações. E o poeta esperava, naquele canto sóbrio, meio enternecido de sombra, raspado do passado, ainda que o hotel fosse então novo e pouco fizesse prever a glória a que o meu coração o consagra. Previra os bárbaros, é certo, mas não os previra assim. O obelisco está algures em Nova Iorque. Central Park, creio. in Anastasis