Cazaquistão: As razões da agitação num país rico em petróleo

As agências noticiosas internacionais Agence France-Presse e a Associated Press compilaram alguns dados e informações para se compreender melhor esta crise

O Cazaquistão, uma ex-república soviética na Ásia Central, está a viver os piores protestos de rua desde que conquistou a independência há três décadas, desencadeados pelo aumento do preço dos combustíveis.

Os protestos degeneraram em motins em várias cidades e, desde 02 de janeiro, dezenas de pessoas foram mortas, incluindo 13 elementos das forças de segurança, com o registo de um milhar de feridos e a detenção de milhares de manifestantes.

A contestação foi desencadeada pelo aumento dos preços do gás liquefeito, um dos combustíveis mais utilizados nos transportes do país, de 60 tengues por litro (0,12 euros) para o dobro, 120 tengues (0,24 euros).

Face à situação, o Presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev, decretou o estado de emergência em todo o país e pediu a intervenção de uma força da Organização do Tratado de Segurança Coletiva, uma aliança militar de seis antigas repúblicas soviéticas.

A organização anunciou o envio de militares da Rússia, Bielorrússia, Arménia, Quirguizistão e Tajiquistão para “estabilizar e normalizar a situação” no território cazaque.

O Cazaquistão vende a maior parte das suas exportações de petróleo à China e é um aliado estratégico da Rússia, países seus vizinhos. Com mais de 2,7 milhões de quilómetros quadrados, o Cazaquistão é o nono maior país do mundo, abrangendo um território do tamanho da Europa Ocidental.

Tem fronteiras com Rússia, China, Quirguistão, Uzbequistão e Turcomenistão, além de uma parte do território nas margens do mar Cáspio, considerado o maior lago do mundo.

É na vasta estepe cazaque que se situa o Cosmódromo de Baikonur, operado pela Rússia: seis décadas após Yuri Gagarin ter descolado da sua plataforma, é a única base de lançamento para enviar naves espaciais para a Estação Espacial Internacional (ISS).

Orgulhoso da sua História e tradições nómadas, o Cazaquistão celebrou o 550.º aniversário do primeiro Estado cazaque em 2015.

As celebrações foram vistas como uma resposta à alegação do Presidente russo, Vladimir Putin, de que o Cazaquistão nunca tinha sido um Estado antes da sua independência de Moscovo em 1991.

O território nómada foi gradualmente conquistado nos séculos XVIII e XIX pelo Império Russo, cujos colonos fundaram Alma-Ata (hoje Almaty). Em 1936, o país tornou-se uma das 15 repúblicas federadas da União Soviética.

Embora os cazaques representem quase 70% dos 18 milhões de habitantes, maioritariamente muçulmanos, o país teve sempre uma grande minoria russa, que é agora estimada em um quinto da população (em comparação com mais de 40% nos anos de 1970).

Porque é que a população cazaque está zangada?

Das cinco repúblicas da Ásia Central que conquistaram a independência após a dissolução da União Soviética, o Cazaquistão é de longe a maior e a mais rica: possui colossais reservas de petróleo, gás natural, urânio e metais preciosos.

Habituado a taxas de crescimento de dois dígitos, o país tem vindo a sofrer desde 2014 com a queda dos preços dos hidrocarbonetos e a crise económica no seu aliado russo, o que levou a uma inflação elevada.

O petróleo representou 21% do Produto Interno Bruto (PIB) do Cazaquistão em 2020, segundo o Banco Mundial, que prevê um crescimento económico de 3,7% este ano.

Dependente do mercado chinês para exportar o seu petróleo e gás, o Cazaquistão integra o vasto projeto da China das “novas rotas da seda”.

Embora as riquezas naturais do Cazaquistão tenham ajudado a cultivar uma sólida classe média, as dificuldades financeiras são generalizadas: o salário mensal médio nacional é ligeiramente inferior a 600 dólares (530 euros), o sistema bancário tem vivido crises profundas e a corrupção é galopante (o país ocupa o 94.º lugar no Índice de Perceção da Corrupção da Transparency International).

O protesto que desencadeou a atual crise ocorreu na cidade petrolífera ocidental de Zhanaozen, onde os ressentimentos há muito que se manifestam devido à sensação de que as riquezas energéticas da região não têm sido distribuídas de forma justa entre a população local.

Quando os preços do gás de petróleo liquefeito, que as pessoas da região utilizam para abastecer os seus carros, duplicaram de um dia para o outro, a paciência esgotou-se. Os residentes das cidades próximas juntaram-se rapidamente e, em poucos dias, os grandes protestos espalharam-se pelo resto do país.

Quem está a liderar os protestos?

A supressão das vozes críticas no Cazaquistão tem sido a norma há muito tempo. Quaisquer figuras que aspirem a opor-se ao Governo ou são reprimidas, marginalizadas ou cooptadas.

Embora estas manifestações tenham sido invulgarmente grandes – algumas atraíram mais de 10.000 pessoas, um grande número para o Cazaquistão –, não surgiram líderes de movimentos de protesto.

Durante a maior parte da história recente do Cazaquistão, o poder esteve nas mãos de Nursultan Nazarbayev, primeiro secretário do Partido Comunista Cazaque em 1989.

O “Pai da Nação” (“Elbassy”, no Cazaquistão), entregou a presidência ao seu aliado Kassym-Jomart Tokayev em 2019, mas manteve o cargo de chefe do conselho de segurança, que supervisiona os serviços militares e de segurança.

Foi também estabelecido um culto à sua personalidade: a capital Astana foi renomeada Nursultan, o seu primeiro nome, logo após ter deixado a Presidência.

Foi o antigo Presidente que ordenou, em 1997, que a cidade de Astana, localizada no meio das estepes no norte do país, se tornasse a nova capital do Cazaquistão em vez de Almaty, que continua a ser a maior cidade e a capital económica.

Grande parte da ira manifestada nas ruas nos últimos dias foi dirigida não a Tokayev, mas a Nazarbayev: “Shal ket!” (o correspondente a “Vai embora, velhote! “) tornou-se um dos principais ‘slogans’ dos manifestantes.

Como é que as autoridades estão a responder?

As autoridades disseram hoje que dezenas de pessoas morreram nos motins, incluindo pelo menos 13 elementos das forças de segurança.

A cidade de Almaty tem sido a mais afetada, e houve tentativas de invadir edifícios durante a noite, quando “dezenas de atacantes foram liquidados”, segundo disse uma porta-voz da polícia ao canal de notícias estatal Khabar-24.

As tentativas relatadas de invasão dos edifícios vieram depois da agitação generalizada em Almaty na quarta-feira, incluindo a ocupação do edifício da Câmara Municipal, que foi incendiado.

A reação inicial estava de acordo com a política habitual, com o destacamento de um grande número de efetivos das forças de segurança.

Mas, ao contrário do que acontece normalmente, em que a polícia dispersa as manifestações com facilidade, o número de pessoas nas ruas de Almaty era demasiado elevado desta vez.

Com edifícios governamentais a serem assaltados em várias grandes cidades, Tokayev apelou à ajuda da Organização do Tratado de Segurança Coletiva, uma aliança militar liderada por Moscovo.

Tokayev justificou o apelo à intervenção externa alegando que os manifestantes estavam a operar a mando de grupos terroristas internacionais, mas não forneceu pormenores sobre o que queria dizer com isso.

Pode o Governo ser derrubado?

Esta é uma situação sem precedentes no Cazaquistão, onde já ocorreram grandes manifestações, como em 2016 e em 2019, mas nunca com esta escala e estas consequências, incluindo um pedido de ajuda a forças externas.

Num dos seus apelos ao público na quarta-feira, Tokayev comprometeu-se a prosseguir as reformas e deu a entender que a liberalização política poderia ser possível. Os seus comentários posteriores, no entanto, sugeriram que, em vez disso, poderá enveredar por um caminho mais repressivo.

Ainda assim, porque os protestos de rua estão pouco concentrados, pelo menos por agora, é difícil antecipar como poderão terminar. Mas mesmo que não consigam derrubar o regime, parece possível que possam levar a uma transformação profunda. O que não é claro é o que isso pode significar, segundo a AP.

Hoje de manhã, o governo do Cazaquistão decidiu impor limites máximos nos preços dos combustíveis durante seis meses, medida que visa “estabilizar a situação socioeconómica” no país, segundo uma nota no ‘site’ do primeiro-ministro, citada pelas agências internacionais.

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