Raiva

Raiva. É o que me invade e coloniza ao saber da morte do João Paulo. Como se não fosse possível o desaparecimento do seu olhar pleno de doçura, da sua voz fremente de ideias, do seu sempre renovado abraço solidário e cúmplice.

Tínhamos ainda tanto para fazer, João Paulo. Como é possível que nos deixes assim, de projectos nas mãos que nunca apertámos porque o nosso ritual era sempre um fraternal abraço? Raramente encontrei alguém com quem tivesse tantas coisas em comum, tantas paixões para partilhar, tantos sonhos para realizar.

Raiva. Vêm-me à ponta dos dedos palavras feias com que solitário agrido os céus. Não as quero deixar aqui, não as quero partilhar com ninguém. Ficam entre mim e Deus, cuja única desculpa é não existir.

Graças a ti, João Paulo, o Hoje Macau cresceu no mundo da lusofonia. Graças a ti, João Paulo, voltei a acreditar que este país ainda era possível. Apresentaste-me o Paulo José Miranda, o António de Castro Caeiro, o António Cabrita, o Luís Carmelo, o Valério Romão, a Rita Taborda Duarte, a Gisela Casimiro, o José Navarro de Andrade, o José Luís Tavares, o José Anjos, o Bernardo Trindade e muitos outros, que agora creio órfãos, como eu, da tua partida, mas que me fizeram acreditar que Portugal ainda era possível. Sobretudo, porque a tua capacidade de acreditar me motivava e me arrancava ao diletantismo que marca as minhas breves passagens pelo país que me viu nascer.

Já não vamos fazer o jornal de esquerda que tanta falta faz a Portugal e ao seu povo. Já não vais publicar os meus pobres livros. Mas, sobretudo, já não me vou sentar contigo, horas sem princípio nem fim, refém das tuas palavras e, sobretudo, do teu olhar. Sobre mim e sobre as coisas.

Eras um imane, um aglutinador de escritores, de artistas, de pensadores. E fazias isso sem esforço e sem tretas. E não digo que o fazias unicamente pelas letras, mas porque eras um ser humano excepcional, que sem ignorar a maldade dos homens a remetia para o seu devido lugar: o caixote do lixo do esquecimento.

Raiva. Expludo de raiva. Esvaem-se-me as palavras, impotentes para exprimir a dor. Até sempre.

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