Taiwan e a Revolução Francesa

Na política internacional existe uma diferença considerável entre “adversários/competidores” e “inimigos”. Ora face ao extraordinário desenvolvimento que a China (RPC) tem conseguido nas últimas décadas é actualmente ambígua a posição dos EUA face ao gigante asiático.

O presidente Trump, a quem as questões económicas interessavam particularmente, abriu de forma grosseira as hostilidades criando múltiplas dificuldades às empresas chinesas de se expandirem no mercado global. O caso Huawei é o mais mediático, mas não é o único. Várias firmas chinesas viram erguerem-se barreiras aos seus produtos, quer alfandegárias, quer políticas. Ou seja, os EUA compreenderam que não podem deixar os chineses agir livremente no mercado global sob pena de serem ultrapassados no seu próprio jogo.

País que costuma defender a liberdade comercial, quando isso convém às suas empresas, já outro galo canta quando compreende não ter capacidade para jogar com essas mesmas regras. E quando é assim, mudam-se as regras do jogo. Foi o que fez Trump, aumentando radicalmente as taxas alfandegárias relativas a produtos chineses e invocando, cinicamente, questões relacionadas com os direitos humanos de modo a restringir o interesse por certos produtos feitos na China, como o caso do algodão produzido em Xingjiang.

Felizmente para a RPC o seu mercado interno é de tal modo vasto e a sua população conheceu um tal crescimento económico, solidificando uma extensa classe média, que as empresas chinesas conseguem sobreviver mesmo quando os mercados internacionais lhes levantam problemas, seguindo as ordens americanas.

Nos EUA o tema China é transversal aos dois maiores partidos e o actual presidente Joe Biden segue as pisadas do seu antecessor. Contudo, cada vez mais a retórica americana parece pretender transformar um adversário industrial e comercial, num inimigo global, fazendo da China um substituto da defunta URSS e criando o ambiente propício a uma nova Guerra Fria.

Para isso, a política externa dos EUA não se coíbe de tentar desestabilizar por vários meios a sociedade chinesa. Hong Kong é disso um exemplo (conseguido numa primeira fase e depois falhado, mas com graves consequências para a cidade), como a situação dos Uigures em Xingjiang (os EUA apoiam grupos no exterior sediados em Idlib, sede do Estado Islâmico) e, agora mais recentemente, Taiwan.

A questão de Taiwan é particularmente sensível para Pequim. De modo nenhum a RPC admitirá, no horizonte, outro desfecho que não seja a reunificação do país. No entanto, a RPC já deu mais que mostras da sua paciência e deixou, a partir de 1979, de empregar o termo “libertação de Taiwan”, que sugeria uma intervenção militar, preferindo “a promoção de uma reunificação pacífica, através do desenvolvimento dos laços económicos e humanos”. Sabe-se, contudo, e Pequim não se cansa de o reafirmar, que uma declaração de independência motivaria uma invasão, independentemente de pressões internacionais ou da presença militar dos EUA.

Nos últimos tempos, sentindo-se respaldada pelos EUA e pelas suas acções e discursos sinófobos, a actual administração da ilha tem-se mostrado cada vez mais reticente face à RPC. Se o Kuomitang havia enveredado por uma política de “dois gumes”, mantendo a aliança estratégica com os EUA, mas fortalecendo sobremaneira os laços económicos com Pequim e mantendo na gaveta quaisquer veleidades independentistas, já o partido agora no poder tem de tal modo hostilizado a RPC que os media internacionais, a soldo dos interesses americanos, fazem questão de proclamar, em manchetes atrás de manchetes, a iminência de uma guerra. The Economist, por exemplo, fez uma capa em que considerava o Estreito de Taiwan como “o lugar mais perigoso do planeta”. Regularmente assistimos, nos últimos meses, a notícias principais em órgãos de comunicação social que vão da direita radical e trauliteira (Fox News) à esquerda liberal e fofinha (The Guardian) em que Taiwan aparece em parangonas e a invasão da ilha é dada como algo adquirido, prestes a acontecer.

Declarações de responsáveis militares americanos reforçam esta propaganda belicista, algo que não é novo e faz parte da estratégia usual do império americano, em Taipé e noutras partes do mundo. Mais recentemente, os EUA têm procurado novos aliados na Ásia, além do subjugado Japão, como a Índia, o Vietname, as Filipinas, entre outros, sempre com o objectivo de minar os interesses chineses.

A administração de Taiwan, dirigida pelo Partido Democrata Progressista (DPP) da senhora Tsai, para agradar aos patrões americanos de forma radical, prestou-se em 2020 a envenenar o seu próprio povo, na medida em que levantou uma interdição de importação de carne de porco, alimentada com ractopamina, uma substância nociva que actua nos músculos dos animais, e que impede a sua comercialização, por exemplo, na União Europeia. Para o DPP, vale tudo, desde que isso garanta aos seus membros fartos negócios, nomeadamente de armas, com os EUA.

Se, num dia, Biden reafirma a política “uma só China”, no dia seguinte um grupo de congressistas americanos desloca-se a Taipé para “avaliar a situação”. Como se os EUA não dispusessem na capital da ilha de um chamado American Institute in Taiwan (AIT), com filiais noutras cidades da ilha. O AIT define-se como uma organização sem fins lucrativos financiada pelo governo dos EUA. Contudo, na prática, é uma das presenças mais caras dos americanos na Ásia e todos se lhe referem como sendo uma embaixada de facto, incluindo o próprio director da instituição. Ou seja, os EUA lançam mão de todos os meios para provocar Pequim e minar as relações com Taipé.

De tal modo o discurso subiu de tom que a própria senhora Tsai já veio dizer que não pretende declarar independência e assim dar sinal verde para a invasão. Mas as provocações continuam porque os EUA sabem que podem usar a carta Taiwan para denegrir a imagem internacional da China.

Muito boa gente teme a eclosão de uma guerra, que poderia ter consequências terríveis, para a região e para o mundo, mas não nos parece que as coisas cheguem a esse ponto de total irracionalidade. Cabe, principalmente, à própria ilha decidir se quer ser um peão no jogo global dos EUA ou se pretende manter o status quo e melhorar as relações com Pequim, no sentido de não excluir uma futura e inevitável reunificação.

Apesar do que vem quase diariamente esparramado na imprensa internacional, não acreditamos que a RPC prepare uma invasão, a não ser que a administração da ilha cruze a chamada “linha vermelha”. E também não acreditamos que Taipé embarque totalmente nas aventuras que lhe são postas na mesa pelos americanos.

A paz é fundamental para o desenvolvimento das condições de vida das populações e o actual status quo, reafirmado pelos dois lados do Estreito em 1992, permite uma coexistência pacífica cuja continuação fará com que a reunificação aconteça quando mudanças dos dois lados criarem a atmosfera ideal para isso. Mas isso é um assunto interno do País do Meio. A China parece nunca ter pressa e compreende de modo distinto do Ocidente o desenrolar da História, como se existissem duas diferentes velocidades. Zhou Enlai, quando perguntado sobre o que pensava da Revolução Francesa, respondeu que só tinham passado ainda 200 anos e por isso ainda era cedo para dessa revolução extrair conclusões, quanto mais exprimir uma opinião. Também por esta razão, acredito que a questão de Taiwan só poderá ter uma resolução pacífica e acabará por se atingir a reunificação.

 

PS: Porque referi o ex-primeiro-ministro Zhou Enlai, não resisto a partilhar um episódio dos anos 60. Num encontro com Nikita Kruschev, o presidente da URSS disse-lhe: “A diferença entre a União Soviética e a China é que eu tenho origens camponesas e populares, enquanto o senhor vem da classe privilegiada dos mandarins.” Ao que Zhou lhe respondeu: “Tem razão mas em comum temos o facto de ambos termos traído as nossas origens”.

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