Associação dos Advogados de Macau | 30 anos de adaptação a novos tempos

A Associação dos Advogados de Macau foi criada em 1991 para garantir a manutenção da classe e a autorregulação após a transferência de soberania do território. Advogados e antigos dirigentes falam de um projecto bem-sucedido, da importância de manter o Direito de matriz portuguesa e lamentam que não surjam nomes para substituir Jorge Neto Valente na presidência da associação

 

A advocacia é hoje a única profissão liberal em Macau com autorregulação e isso deve-se à visão dos advogados que, ainda na década de 90, ainda durante a Administração portuguesa, pensaram no futuro. Em 1991 seria oficialmente criada a Associação dos Advogados de Macau (AAM), provando-se que uma mera extensão da Ordem dos Advogados (OA) não iria funcionar.

Eram os tempos em que a “ideia de associação era uma coisa peregrina”, conforme lembrou o advogado Miguel de Senna Fernandes. Isto porque “o tradicional advogado sempre foi independente, um profissional liberal”. “Não havia muito a tradição dos escritórios de advogados”, lembrou.

“Os advogados começaram a ter a percepção da necessidade de se organizarem (…) para que a transição fosse harmoniosa. A base de autonomia, independência e autorregulação é a coisa mais preciosa que os advogados têm”, destacou Frederico Rato, sócio e fundador do escritório Lektou.

Para o causídico, o percurso da AAM, nos últimos 30 anos, “não tem tido grandes solavancos, mas não é fácil”. “Tem sido um percurso com coerência, homogeneidade e dignidade, respeitando o carácter técnico e ético da nossa actividade”, frisou.

Amélia António, advogada e presidente da Casa de Portugal em Macau (CPM), esteve ligada à criação do primeiro escritório de advogados no território. ao HM, faz um “balanço bastante positivo” do trabalho da AAM. “Se esse passo não tivesse sido dado [a criação da associação] os advogados não tinham hoje o estatuto que têm, não tinham um órgão autorregulador.”

Para Amélia António a associação foi sabendo viver com condicionantes momentâneas e conseguiu “pôr acima de tudo a defesa das condições do exercício da profissão, que continua a ser um ponto extremamente importante para todos os advogados”, acrescentou.

Miguel de Senna Fernandes também destaca a importância da associação “que foi um marco fundamental e estrutural da ideia e prática do Direito em Macau”. “Sem a associação, a prática do Direito estaria muito desorganizada. Está mais consolidada, é uma associação que se adaptou aos novos tempos. O universo dos colegas é radicalmente diferente daquele que era no início e ainda bem que assim é”, adiantou o advogado macaense.

João Miguel Barros, que foi secretário-geral da AAM, recorda o facto de a associação ter começado “de forma mais cautelosa, ganhando depois credibilidade”. “É a única associação pública profissional que existe na RAEM. Nem tudo é perfeito, mas é importante que se mantenha assim. Acima de tudo é importante ter presente o que é ser advogado e o papel da advocacia em qualquer sociedade”, adiantou.

Olhando para estes 30 anos, Barros destaca a criação dos centros de arbitragem e mediação, um processo que começou “tarde”. “Uma das últimas coisas em que me empenhei foi na criação de um centro de arbitragem, mas só agora é que se começam a dar passos mais seguros no sentido de desenvolver a arbitragem e a mediação”, frisou.

Neto Valente, o rosto de sempre

Jorge Neto Valente tem sido o presidente da AAM nos últimos anos e, à excepção de uma tentativa de candidatura de Sérgio de Almeida Correia, que acabou por não avançar, mais ninguém tem dado esse passo. João Miguel Barros lamenta que “a associação não tenha tido capacidade de renovação”.

“Sou a favor da limitação de mandatos, embora isto não tenha uma crítica implícita a ninguém. Vale tanto para este presidente como para qualquer outro, é uma questão de princípio. Não é saudável para a associação que sejam sempre os mesmos rostos que estejam a exercer o poder.”

Para Amélia António, não basta apontar o dedo a quem assume estes cargos. “As pessoas não estão impedidas de concorrer e de manifestar as suas posições. Se a associação mantém uma determinada gestão ao longo dos anos é porque as condicionantes apontaram para aí, porque não se colocam alternativas, as pessoas não aparecem. Com associações de peso, com impacto social, não é fácil que surjam alternativas credíveis assim de repente.”
Miguel de Senna Fernandes considera que Jorge Neto Valente tem sido um presidente “consensual”. “Naturalmente, há sempre vozes contra e respeita-se isso, mas neste momento não vejo outra pessoa com perfil para presidir à AAM. Obviamente que haverá e terá de haver, caso contrário a associação morre numa pessoa”, frisou.

A manutenção do Direito

Numa altura em que a integração regional do território, no contexto da Grande Baía, é palavra de ordem, já existem alguns escritórios de advogados do lado de lá da fronteira. Cabe então à AAM assegurar a manutenção do Direito local, de matriz portuguesa, e da língua portuguesa.

“É fundamental que se defenda a matriz própria de Macau, que assenta na igualdade de línguas. Oxalá que os futuros dirigentes da associação defendam esta matriz específica. Apesar de os colegas chineses estarem em maioria, não se esqueceu da matriz muito própria de Macau que passa pelo uso da língua portuguesa.”

Para Amélia António, “o Direito não é estático e tem de acompanhar a evolução” da sociedade. Ainda assim, “há princípios basilares em que assenta toda a estrutura que têm de ser defendidos e preservados”.

Hoje há cada vez mais advogados formados em Macau e que dominam o português e o chinês, o que faz com que o cenário da prática do Direito tenha mudado em relação aos primeiros tempos da AAM. “É inevitável que isto aconteça [mais advogados bilingues]. Mas o não domínio da língua chinesa não pode significar redução de direitos para os advogados de língua portuguesa em Macau. Não podemos abdicar da língua portuguesa e esse problema vem sempre ao de cima na abertura do Ano Judiciário. O bilinguismo é um facto, e é por aí que se deve caminhar”, disse João Miguel Barros.

O advogado não está contra a entrada de escritórios locais na Grande Baía, mas pede a manutenção dos princípios já consagrados nas leis. “Temos uma Lei Básica e uma configuração judiciária que está garantida por um período de 50 anos. A AAM tem o dever de zelar para que se cumpram os princípios orientadores que são próprios da RAEM. Mas outra coisa é manter o isolamento, e a AAM tem anunciado um conjunto vasto de acções para promover o intercâmbio com outras associações do continente. Acho que é importante que esse caminho seja prosseguido.”
Miguel de Senna Fernandes considera que é cedo para ver a ligação do sector ao projecto da Grande Baía, mas a integração é, sem dúvida, um passo. “É fundamental que em Macau haja respeito pelas especificidades do Direito local. Se no futuro tende a misturar-se e a diluir, não tenho dúvidas. A tendência natural é da uniformização, mas Macau continua a ter essa especificidade. Há escritórios que já estão na Grande Baía porque têm condições para o fazer. Mas é necessário ver o que isto significa para escritórios de menor dimensão e projecção e ainda não há nada visível que possa atrair isso de forma generalizada. Mas é uma questão de tempo.”

Criticar ou não criticar?

Nos últimos anos Jorge Neto Valente tem feito intervenções públicas pontuais, mas é no habitual discurso de abertura do Ano Judiciário que o presidente da AAM aproveita para fazer os devidos reparos ao estado da justiça.

Nos últimos anos, as suas bandeiras têm sido, por exemplo, o aumento do número de magistrados no Tribunal de Última Instância (TUI) e a valorização do papel dos tribunais. Além disso, não têm faltado reparos quanto à necessidade de apostar mais no sistema de arbitragem e mediação, à qualidade dos cursos de Direito no território ou às falhas de interpretação da lei em muitos serviços públicos. No discurso de 2019, Jorge Neto Valente falou também da “preocupação” sobre a situação que se vivia em Hong Kong, com protestos nas ruas. “O nosso quotidiano depende, em muitos aspectos, da normalidade da vida em Hong Kong. As imagens que a toda a hora nos chegam pelos noticiários e redes sociais revelam a destruição criminosa de propriedades públicas e privadas sem qualquer razão, agressões a residentes pacíficos só porque não apoiam os manifestantes e, sobre tudo, ataques armados aos agentes policiais que tentam fazer cumprir a Lei e proteger os cidadãos. É sabido que a violência gera violência; mas há que escolher entre restabelecer a ordem nas ruas e regressar à paz social, ou permitir que os motins se arrastem até situações caóticas de que será muito difícil recuperar.”

Para Frederico Rato, “a associação tem tido uma voz activa e participante”. “Há associados que defendem que a AAM deveria ter uma voz ainda mais crítica para determinadas situações, e há outros que dizem que exagera nas suas posições, mas as coisas são assim. A AAM tem de ter uma actuação que seja, de algum modo, coadunada com a realidade em que vai actuando, que tem alterações às quais é necessário estar atento e tomar medidas”, apontou.

João Miguel Barros é uma das vozes que pede maior intervenção. “Noto uma grande diferença de posicionamento entre a direcção da AAM e a associação de advogados de Hong Kong, que tem um papel mais interveniente na defesa de princípios e de valores fundamentais. A AAM é muito silenciosa relativamente a esse aspecto e isso é uma coisa que me custa, porque faz parte do código genético dos advogados defender direitos e as liberdades das pessoas. A AAM tem de começar a ter uma intervenção pública mais acutilante sempre que estejam em causa certas situações.”
João Miguel Barros considera “inaceitável que não exista um impedimento ou incompatibilidade para o exercício de cargo na AAM em relação aos advogados que exerçam actividades comerciais e empresarias executivas em empresas”. “Não vejo inconveniente em pertencer a mesas de assembleias-gerais ou a conselhos consultivos, mas vejo potenciais conflitos de interesses quando em simultâneo se exerçam actividades em conselhos de administração ou de direcção de empresas. E esta exigência de transparência deve ser reforçada em relação a todos aqueles que se proponham exercer cargos socais na AAM”, adiantou o advogado.

O HM tentou chegar à fala com Jorge Neto Valente, mas até ao fecho desta edição não foi possível estabelecer contacto. Também não foi possível obter um esclarecimento sobre em que fase está o processo de negociações com a OA para um novo protocolo relativo à vinda de advogados portugueses para o território.

Hoje a AAM tem 446 advogados inscritos e 133 advogados estagiários, segundo dados do ano passado. Estes agrupam-se em 100 escritórios independentes. De entre os advogados, há 91 notários privados.

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