O homem que olhava fixamente o sol

Há que fragmentar o medo. Frequentar. Enfrentar bocadinho a bocadinho para que a coragem possa deixar-se ser pequena de cada vez. É nos pequenos gestos que não custam que devemos deter o olhar. Pequenos passos se não os conseguimos enormes como a enormidade do sentir evoca.

Há que frequentar o medo. De visita e passagem. Avançar em passo miúdo. Deixá-lo ser. Deixar-nos ter.
Passamos uns pelos outros, sem entender sequer a pele do rosto. A vida secreta da carne. Passar. Desfiar campos onde houve pensamentos. Porque os campos descansam na imanência percorrida do tempo. Pele da crosta à flor, de uma terra que atrai os corpos e neles almas em turbilhão uma espécie de arrepio do frio cósmico que habita a caixa pequena do crânio. Pequeno universo fechado a sete chaves. Pequena chave perdida, a de verdade.

A cidadela de luzes cénicas a afastar os perigos da noite. Uma encenação de vigilância. O que não dorme. Como um suceder de salas nocturnas de museu fechado. As pessoas, no que é visível, deitam-se cedo ou escondem-se portadas fechadas adentro. Qualquer passo, ecoa de longe num som cavo e único como se da última pessoa do mundo e anunciada de longe. Denunciada.

Os cantos misteriosos que tudo podem conter. Surpresas, sustos. Sair das muralhas da cidade, a luz a queimar as areias secas e estéreis, mas é o deserto preciso e necessário. A alucinação dos tapetes de água a iludir os sentidos, sempre. Quando a sede é muita. 
Quando há e se sabe, e a ilusão se há somente depois se soube. Por isso é o deserto sentido e cumprido como caminho planeado e já visto, já conhecido. Caminha-se, a economizar as águas do corpo como se para nada se sentir perdido. E voltar. Os lábios secos e os ossos doridos, os pés, aos muros da cidadela, a casa, aos confortáveis sentidos.

Persegue-me aquele que aquém da fronteira da infância, ao longo de anos encontrei petrificado a olhar o sol. Fixamente. De frente, como experiência literal de mergulho na cegueira. E depois rodava a cabeça levantada e dirigia-me um olhar verde, transparente e com uma espécie de sorriso no fundo que não sei se para mim que passava, ou restos vindos do sol. Não sei se já com o olhar esvaziado da possibilidade de ver. Invejava-lhe apenas a liberdade de parar num lugar qualquer sem se ater à esquadria do lugar ou a preceitos de arrumação do corpo no espaço público. Estava, simplesmente. Num lugar qualquer e sem paralelismo às paredes ou racionalização das diferenças utilitárias. O meio da estrada, como outro lugar qualquer. Ainda o vejo à distância dos anos como se do alto de uma janela para aquele tempo. O rosto nítido barbado de desleixo e impotência. Parado a olhar para o sol.
E se existiu existe. Senão sentido, lembrado. Não pode ter sobrevivido

O que diz da medida em que se é frágil, aquilo que abismalmente se sente, ou aquilo que resta em imagem sobrevivente e visível do exterior. O que diz da força diz da fraqueza? A terra do nunca é o lugar (de) onde se sonha maior… Maior do que nunca…Maior do que nunca por nunca ser.

Com medo da própria sombra que as suas palavras desenham. A fuga para outras. E outras. Como ilhas ínfimas em que os pés quase não assentam de tão mínimas as polegadas de solidez. O olhar errante. O burburinho voluntário da alma a tapar os ouvidos como pode. Que nada entre. Que nada surpreenda, fira, golpeie. Permaneça. Toque. Ao toque.

Venho encontra-lo igual, num recanto dos muros da cidadela. Ao lado do feixe de luz. Parado, arrumado agora como a cobrir-se da sombra fantasmagórica que ao lado subia pelas muralhas. Com o saco de plástico caído pela mão abaixo esticado e a conter um pequeno desconhecido. Fuma beatas que recolhe atrás dos passos dos outros. Acende e logo depois já terminou o curto prazer de fósforo. Deixo cair um cigarro novo e sei que não lhe escapa o gesto que nos protege a ambos. A ele a face a mim o medo.

Sei que o apanha. Depois. Escuro e clandestino. De olhos intensos. De tanto ter olhado o sol na minha memória de final da infância.

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