Primeiro acto – Cena 4

Gonçalo levanta-se e vai até ao lava-loiças, pega num copo e bebe água da torneira. Na divisão ouve- se um copo cair ao chão e a desfazer-se em cacos.

Gonçalo
Parabéns!
Valério
[fora de cena]
Obrigado.

Valério abre a porta e quase que leva com o pano ensopado que Gonçalo lhe atira.
Valério
É um filme ou um livro?
Gonçalo
O quê?
Valério
“O Joãozinho Neo-Nazi vai à guerra”.

Valério volta a sair pela porta. Ouvimo-lo limpar os cacos de vidro. Gonçalo volta para a sua cadeira e serve-se de mais vinho, terminando mais uma garrafa.

Gonçalo
Estás a trocar tudo!
Valério
[fora de cena]
Peço desculpa, meu senhor. Você é tão prolífico que eu já não sei a quantas ando.

Valério sai com os cacos embrulhados no pano, fecha a porta com o pé e aproxima-se do caixote do lixo por baixo do balcão. Passa o pano por água e torce-o. Lava as mãos e regressa à sua cadeira.

Gonçalo
O neo-nazi é o que encontra uma máquina do tempo.
Valério
Pois é!
Gonçalo
O que vai à guerra, ainda não sei quem é.
Valério
Mas é um filme ou é um livro?
Gonçalo
Ainda não sei… é uma imagem… uma cena que me tem surgido algumas vezes… parece-me interessante. Mas é igual a milhares de outras.

Valério
Por ser igual a tantas outras, vais desistir? [pausa] E é igual em quê? Uma situação de guerra? O tal êxtase no meio de tiros e explosões?

Gonçalo
Não vou desistir! Partilhei uma ideia que me anda às voltas na cabeça… nem sei se a vou começar.
Valério
Acaba lá a história do neo-nazi e da máquina do tempo…
Gonçalo
Não gostas no cenário de guerra.

Valério dá-se conta de que o vinho acabou e lá vai ele à mesa abrir outra garrafa.
Valério
Já vais recomeçar!? Acabaste de dizer que é só uma ideia que te anda às voltas na cabeça… nem personagem tens.

Gonçalo
Está bem, mas eu partilhei-a… contei-ta para ouvir a tua reacção!!
Valério
E eu ouvi. e é uma boa ideia. E foi por isso que perguntei se era um filme ou um livro ou uma performance-instalação! Mas tanto pode ser o princípio, o meio ou o fim de alguma coisa… É ou não é verdade? Queres melhor terapeuta do que eu? Falas, falas… eu oiço-te, ajudo-te… mas há limites, caramba!

Gonçalo
Estás irritado porque o vinho está a acabar.
Valério
Não! Estou irritado porque tu esgotas a paciência de qualquer um com tanta insegurança. Quando o vinho acabar, vamos à garrafa de uísque que tens ali no chão, ao lado do caixote do lixo.

Valério regressa à sua cadeira com mais uma garrafa de vinho e volta a encher os dois copos., cambaleando durante a operação. Senta-se e acende um cigarro. Oferece um a Gonçalo e dá-lhe lume. Os dois dão uma longa baforada e ficam em silêncio durante algum tempo.

Valério
Porque é que puseste ali a garrafa?
Gonçalo
Para não a bebermos.
Valério
És tão atencioso…
Gonçalo
Ele está lá deitado… os outros andam de um lado para o outro com os aparelhómetros… usam todos máscara e viseira… é difícil ver-lhes a…

Valério
[interrompendo]
Isso na cena de guerra?
Gonçalo
Não…! Ai a minha vida.
Valério
Recomeças do nada…! Desculpa lá não ter tirado notas, meu anjo.

Gonçalo
Oh…!

Valério
“É difícil ver-lhes a cara…”, continua!
Gonçalo
Sim… e não é por estar de ressaca que ele não se consegue mexer.

Valério
Uau.

Gonçalo
Uau, o quê?
Valério
Porque é bom! Põe-nos logo a pensar… Estará fora do tempo, mas no mesmo espaço? Ou será ao contrário? Sente o corpo, não sente o corpo?

Gonçalo
Foste tu que escreveste a história?!
Valério
[rindo]
Se tivesse sido eu, teria sido publicada!

Valério desata a rir às gargalhadas quando se apercebe de que Gonçalo ficou ofendido com a brincadeira.

Valério
‘Çalinho, ‘çalinho…

Valério aproxima-se do amigo e dá-lhe um beijinho na bochecha e uma cotovelada no braço.
Valério
Vá lá, meu querido… continua.
Gonçalo
[contrariado]
Ele sente o corpo! [pausa] Mas sente-o à distância… não muita… sente o corpo a uns metros… e em movimento… e dá-se conta de que alguns dos cálculos e medições estão também a ser feitos por ele próprio… quer dizer, ele está deitado, não se mexe, mas os números e as leituras aparecem-lhe como se ele estivesse em movimento. [pausa] Vê o que se está passar do ponto de vista de quem está deitado a um canto, como ele próprio está, naquele momento… mas vê também do ponto de vista de quem se movimenta pela estufa, olhando de um lado para o outro, lendo os aparelhómetros e anotando os números… Apercebe-se de que um dos cientistas que entrou na estufa, todo equipado, com máscara, fato, viseira e mais um par de botas… é ele próprio… mas no dia anterior. [pausa] O ele deitado vê o ele em pé no dia anterior… O ele em pé não vê o ele deitado nesse mesmo dia…

Valério
Repete lá isso!
Gonçalo
O ele deitado… [hesita] … vê o ele em pé no dia anterior. [pausa] O ele em pé… não vê o ele deitado nesse mesmo dia.

Valério
Escreveste assim?
Gonçalo
Não me lembro… [pausa] Acho que não.

Valério
É bom.

Gonçalo
[rindo]
Então, acho que sim!
Valério
É bom, tendo em conta o contexto! A seco, parece poesia manhosa… [declama] O ele deitado… vê!… o ele em pé… no dia anterior… O ele em pé… não vê!… o ele deitado… nesse mesmo dia.

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