Artes, Letras e Ideias CartografiasNovas dos icebergs – 1 Anabela Canas - 23 Fev 202125 Fev 2021 Ou não. Aquele momento insinuou-se numa poética em cinzas. A poesia que surge em claros cinzentos não é nova e se bem que luminosa, melancólica. Por outro lado, há as pequenas coisas e em cada uma, uma ligação a algo maior. Links. Azuis acinzentados. Uma cor variável muito pouco saturada. O gelo marinho ou as neves, em camadas com uma subtil química diferente. O momento começou assim, mas terminou na densa complementar laranja. Os cinzentos de um drama frio, longe da ribalta, num planeta a aquecer e depois os tons potencialmente quentes do planeta vermelho, frio, frio. A ver o futuro. Em cinzentos. Uma falha enorme, uma linha cortante e progressiva a desenhar a cartografia da desolação na plataforma de gelo de Brunt. Um lugar paradigmático de vazio na Antártida. No silêncio dos brancos nas imagens adivinha-se o som de um estalar quase tectónico e igualmente brutal. Uma rotura que se vai delineando em quilómetros de um desenho imparável, que por estes dias, não se sabe quando, deixa de ser apenas uma linha de fissura irreversível no mapa gelado. E desprende-se do colo gelado materno um novo iceberg, ou talvez dois. Irmãos. Órfãos que iniciam, então, a deriva. Ou a rota previsível do suicídio. Do tamanho de duas cidades de Nova Iorque. Ainda mais do que o necessário para os Martinis gigantes dos deuses que nos contemplam, irónicos. São fotografias da NASA. Mas não as dos deuses. Todos os dias a subliminar apetência à elaboração de mapas, á revisão de planos cartesianos a dimensionar a distância, referências ou camadas de verdade espacial nas coisas sólidas e por inerência nas que são impalpáveis. – Encontramo-nos em Marte. Acedi como sempre ao tom incontornavelmente definitivo e misterioso, do enigma em que não se conhece cota ou afastamento e portanto de geometria impossível. E à recusa subjacente em definir pistas ou desenhar linhas no mapa imaginário. O único à mão. E que, como todos, é formado por camadas de diferentes estratos. Não geológicos, mas de verdades sobrepostas e com uma desfocagem inerente àquilo em que umas, como camadas de transparência, diferem das outras, na multiplicidade de contornos e na variação das linhas que demarcam fronteiras. A história, a política, as religiões e as lutas territoriais, a flutuação dos povos, a sucessão de camadas no tempo, a desfocar a leitura de um mapa. Das fronteiras que variam em função de guerras e também de sentidos. E as histórias que se contam, olhares, contos e pontos que se acrescentam. Ou a terra ela própria a criar uma narrativa de registos visuais. Ler as camadas, Também. Como épocas na história da estética. Um planeta no céu é sempre o ponto de encontro do olhar. Cruzado em cima e lá longe. Não sei se dizia isso quando o disse. A ideia era descobrir no enigma dos dias, a viagem a fazer. E o mapa, de momento, caído como sem vida nas mãos, desdobrado, a desvanecer-se em silêncio e a diluir-se em tonalidades difusas, de pouco mais que invisibilidade. Vejo o seu olhar atento à espera do meu caminho imprevisto. Dos erros. E sinto-me espiada enquanto enceto caminho. Procuro. Talvez guiada pelo óxido de ferro. Aquela cor quente seca e em corrosão como as palavras que não se entendem, as dúvidas. Viajo à beira dos desertos. Do Arizona. A vastidão a secura e o desabitado que é. O vento. A cor. A terra. Um canal de irrigação serpenteia e desenho uma linha de viabilidade na terra desértica do estado. Quando o homem quer, tudo. Lembro de novo a fractura crescente no mapa do gelo. Olho pela janela e no cinzento quase total do dia, a custo algumas cores tímidas e persistentes se afirmam em voz baixa. Aquela terra árida e seca, mas fértil. Somente a precisar de ser regada, acalentada. E os monumentos que a erosão esculpe e que inspiram uma sensação de irmandade que nos repreende de tanto reagirmos ao desgaste da memória. Da dor. Ali, o desgaste construiu. Chamar-lhe nação Navajo, ainda, é uma triste demagogia. Mas ninguém. A paisagem é deslumbrante, desértica e esculpida com minúcia arquitectónica. Monument Valley. Formações rochosas como grandes catedrais, erguidas pela própria terra em homenagem a si. Arenitos. Camadas que são registo da sedimentação, que ecoa a depósitos em rios e mares. Conchas e fósseis e areias de quartzo e feldspato e micas de reflexo luminoso vítreo, aglutinadas por um cimento natural que preserva a memória das eras. A dizer tempos sobrepostos. Perfis. História. No planalto do Colorado, na linha de fronteira entre Utah, Arizona e Novo México. Os quatro cantos. Com os grandes montes rochosos de uma coloração rosada. Dos óxidos de ferro. Os mesmos que em Marte. Daí que possa ter-me perdido no caminho, atraída ilusoriamente pelo mapa de cor. Mas óxido de ferro parece ser a mesma coisa em qualquer ponto do universo. Hematite. Ou, às vezes ferrugem. Uma coisa bonita mas que estraga, voraz. E dali, daquelas sílabas, como voltando de uma viagem, fomos sentar-nos no sofá da sala, como duas páginas de insónia, cúmplices. Encostámos a cabeça, a ver. Num monitor Marte e no outro os desertos do Arizona. Num filme de John Ford. Os mesmos laivos rosados e ferrosos de terras diferentes e sonhos parcialmente idênticos. A verdade é o que vive no interior da nossa cabeça. Mesmo encostada a outra. E no fundo é indiferente se contemplamos a abóbada esférica e estrelada do planetário, nos confins da infância, a paisagem desértica que nos seca os lábios, ou um paradigma além nuvens, porvir para sempre. Separado por duas atmosferas e gravidades e muito espaço-tempo sideral. No meio de uma tempestade global de areia que envolve o planeta numa nuvem perene e avermelhada, ocultando crateras, cavidades abissais e outros registos cartográficos. É indiferente tudo, menos estar. No veludo puído e alaranjado rosa, do sofá, com todas as descolorações e colorações de muito viver o peso dos corpos sentados ao fim do dia. Encostados. Nas suas verdades estrangeiras. Penso: de todas as ficções, qual é a verdade viva. Dentro. Em que o espaço se abre, de uma forma ou de outra ao olhar e nas suas múltiplas imagens desertas. Marte e essa solidão concreta. Que cenário fabuloso, silencioso, estranhamente familiar, e que solidão verdadeira. Como somente aquela em que se acredita. O paradigma da ausência total. Do humano, dos objectos, da memória, dos vestígios. Marte, os desertos do Arizona e outros desertos. Depois penso nos nomes dos brinquedos a percorrerem Marte. O rover Perceverance e o helicóptero Ingenuity. Olho para o lado e pergunto-lhe se não é lindo…