Zerbo Freire, poeta cabo-verdiano: “Cheguei a Macau com uma caderneta de poesias em crioulo”

“Visão, Direcção, Acção” é o primeiro livro do poeta cabo-verdiano Zerbo Freire. Nascido em Lém Cachorro, o autor veio para Macau estudar língua e cultura chinesas com uma bolsa de estudos e fez intercâmbio em Pequim. Depois de vir para Macau, Zerbo Freire passou dos receios que tinha em se expor para ver as coisas sob outro ângulo. A obra é uma publicação da cod e será apresentada por Carlos Morais José na segunda-feira pelas 18h30, na Fundação Rui Cunha

 

Como é que o Centro de Protecção Social de Lém Cachorro influenciou o teu desenvolvimento?

Para falar a verdade foi o momento mais crucial e importante até agora, até chegar aqui. Entrei nesse centro com seis anos, por causa de muitos problemas familiares socio-económicos. É uma casa a que devo muito respeito. De uma certa forma é um centro que contribuiu para o meu desenvolvimento não só pessoal, mas para dentro de mim, é uma coisa mesmo psicológica. Foi lá que comecei a tirar as mágoas, medos, choros. Vim de um bairro problemático, com muitos problemas sociais, e isso de uma certa forma acaba por influenciar a sua vivência, as suas coisas, a sua forma de pensar e estar também. Foi lá que comecei a aprender as coisas, que entrei na escola. Tive sempre aquele acompanhamento, iam ver como estavam as notas. De certa forma foi a casa que contribuiu para eu estar aqui hoje. Saí de lá com 18 anos. E quando saí de lá vim para Macau. É por isso que digo que é uma casa que esteve comigo até hoje.

Chegaste a frequentar o curso de Economia e Ciências Empresariais mas tiveste de o deixar por razões financeiras. Na altura como ficaram os teus planos académicos?

É uma coisa que nos deixa um bocadinho por baixo. Eu já tinha planos de fazer o curso de Economia, porque sempre foi um sonho. Quando se vê que não se pode fazer porque não se tem certas condições financeiras isso acaba por abalar. A única forma de superar isso foi vir para Macau. Vir para Macau foi uma forma de esquecer esse fracasso. Não foi só um fracasso da minha parte mas também foi um fracasso no sentido em que as coisas foram superiores a mim. Não podia fazer mais nada a não ser aceitar e caminhar, fazer as coisas.

Foi de certa forma um fracasso da sociedade… ficaste zangado? Como encaraste a situação?

Um bocadinho. Quando vi que as condições não estavam a dar certo para fazer o curso, a única solução foi deixar o curso e procurar outra coisa para fazer. Tentei procurar trabalho mas não dava para suportar os custos, não era só pagar a escola. Não dava para fazer tudo. A solução era procurar uma bolsa fora, então foi aí que encontrei Macau.

Já te tinha ocorrido vir para Macau antes?

Em relação a Macau, China, nada. Falando a verdade nunca tive ideia de fazer o curso fora, sempre tive uma visão de que se quero ajudar o meu país então tenho de estudar lá, senão há um contraste. Sempre tive a visão de estar lá dentro.

Vieste para estudar língua e cultura chinesa. O que te atraiu mais nessa área?

Foram a língua e a cultura em si. Antes de chegar cá, quando faltavam dois meses para vir, já tinha encontrado a bolsa e comecei a estudar um pouco a língua, ter noção das coisas que ia encontrar, as coisas básicas, aprender um bocadinho de caracteres. Então a partir daí comecei a ter noção do que iria encontrar aqui. Quando cheguei, é claro, [houve] aquele choque, mesmo linguístico. Muitas pessoas falam do choque cultural, mas falo muitas vezes de choque linguístico porque estudar a língua chinesa foi deixar uma parte que sempre sonhei de lado, esquecer mesmo e focar na língua chinesa. Passando anos começou a fazer parte de mim e agora não quero deixar. Às vezes falo sobre a contradição, que mudança. O sonho do cara era ser economista, e agora só quer saber da língua chinesa.

Escreves poemas em chinês. Sentes alguma barreira quando te tentas expressar dessa forma?

Quando escrevi o meu primeiro poema em chinês estava em Pequim. Como as coisas em Pequim são a um ritmo mais elevado, as coisas são mais sérias, num modo mais crítico de falar. Foi lá que comecei a ter mais tempo. As coisas entram, entram, e sente-se uma necessidade de as tirar para fora também. Já gosto de poesia, porque não escrever também poesia em chinês? Claro, não foi fácil escrever a minha primeira poesia em chinês, tenho um programa que se chama pleco no meu celular, e tem algumas ideias na minha cabeça mas são em pinyi, não sei escrever o caractere. Então tinha o celular ao lado, um papel, sentava-me fora da residência e escrevia assim. O caractere que não sabia via no pleco, a gramática que não sabia tinha de ir ver ao livro. Depois complementava. Durava quase uma semana para terminar uma poesia.

Os poemas deste livro foram escritos ao longo de quanto tempo?

Comecei a escrever quando comecei a fazer música, porque também sou rapper. Comecei a fazer música com rimas de poesia, e [decidi] que não ia escrever texto mas poesia. Até é mais sensível. Quando está ‘rappando’ está rimando, tem uma base que é poética. Não é um texto, é uma poesia, é mais completo. Foi assim que comecei a tirar as coisas, com a minha língua de origem, o crioulo. Cheguei a Macau com uma caderneta de poesias toda em crioulo. Quando cheguei ao segundo ano comecei a ter essa ideia de organizar as coisas e fazer um livro. Comecei a tirar tempo para fazer a tradução para português e depois comecei a enviar para o pessoal com mais experiência nessa área aqui, para começar a dar opiniões e dicas. Havia algumas dicas que não me agradaram, mandava a poesia e vinha igual de novo. Não sei se estou a perder o meu tempo, porque não mudava nada. Mandei para outras pessoas até encontrar o Carlos.

É fácil tomar a decisão de tornar público algo que também é tão pessoal?

Claro que não. Eu sempre tive a ideia de que a minha escrita era para mim e ninguém tinha o direito de saber o que estava a escrever. Inicialmente era essa ideia que tinha. Até nas minhas músicas, tenho cerca de 10 faixas de rap mas pouca gente sabe. Aquela gente que sabe é a minha família e amigos mais próximos. Muitas vezes as coisas que escrevo são pessoais, são os meus medos, minhas frustrações, o momento que estou mais sozinho. Quando falo assim de escrita englobo sempre o que está dentro, então quando tiro para fora tinha medo de me estar a expor. É aqui que chega Macau. Quando cheguei a Macau passei a ver as coisas num ângulo diferente, é uma coisa mais diversificada. Porque quando se chega aqui e vê que não é um cara sozinho, que tem muita gente com muitas formas de pensar e que só está a contribuir para isso, é aí que quer se expor, mostrar as ideias e o que sente. Fiquei a perceber que somos feitos de sentimentos, se escrevo sentimentos quero que o pessoal o sinta. Comecei a ter essa coragem.

No poema “partida” falas de abraçar um mundo novo. Em que aspectos sentes que te aculturaste?

No momento em que comecei a tirar as primeiras palavras em chinês, as primeiras frases. A pessoa sai no fim de semana, é a rotina de estudante, quer curtir, e acaba por encontrar outro tipo de pessoas. Há pessoas que falam português, outras inglês, cantonês ou mandarim. Eu sou um cara bem envergonhado, então inicialmente não fui eu. Depois de duas cervejinhas é que começava a chegar junto do pessoal para falar. Então passava todos os meses a estudar, saía para beber e começavam a sair pequenas frases, pequenas conversações. Foi aí que comecei a sentir que não estou sozinho aqui e a coisa estava a começar a entrar. É como comer uma comida pela primeira vez, acha uma coisa horrível, mas quando se come regularmente começa a apreciar as coisas. Não fiquei admirando as coisas, comecei a apreciar, a senti-las.

No livro falas de como o “poder económico é a nossa dívida”. É uma mensagem sobre Cabo Verde, ou mais geral?

É uma mensagem mais geral mesmo, esse poema é uma dedicatória ao continente africano, é uma poesia que fiz especialmente para lá. É uma poesia inspirada no Joseph Ki-Zerbo, que foi um activista burkino e um historiador africano. Através de um livro dele que li, “Para quando África?”, tirei de lá essa inspiração e depois escrevi. Isso que falo de “tornámo-nos soldados mercenários”, tem algumas coisas lá que descrevem a nossa situação hoje. Então essa poesia é uma visão geral do continente, inspirada em Joseph Ki-Zerbo.

E o que achas da forma como está agora o continente?

As coisas continuam a mudar de uma forma lenta, mas continuam a mudar, mas de uma forma lenta. Como Joseph Ki-Zerbo falou, para quando? E quando se coloca essa questão vê-se que esse quando está ainda distante. É por causa da nossa lentidão. Estamos a reclamar de muitas coisas e andando lento.

Vires para fora pode ajudar a que o processo seja mais rápido? O que podes dar de volta?

A única coisa que posso dar de volta é esse conhecimento que a cada dia estou a ter na área de língua e cultura chinesa. É uma cultura e uma língua dotada não só de conhecimento cientifico, mas de conhecimentos do povo. São provérbios, a gente podia reeducar as pessoas através dessas coisas. Pelo menos, o plano que sempre tenho é abrir um instituto no meu bairro onde vou pelo menos começar a levantar crianças com cinco ou seis anos, em idade em que estão com força de aprender. Agora não é tempo de se manobrar com pessoas já com 16 ou 17 anos que já estão crescidas. Se se vê que a sociedade está muito rígida, tem de se puxar, uma coisa tem de ser familiar. Então cresce na família e depois tentar fugir para a sociedade. Tem de aprender isso socialmente. É um dos meus planos, abrir essa coisa para pelo menos levantar no bairro.

Quem admiras mais no ramo da poesia?

Eu nunca peguei num livro de poesia em português para ler assim. É uma coisa bem esquisita para quem escreve poesia em português. Eu comecei a sentir a poesia quando comecei a ler os clássicos chineses. Pode perguntar como é que eu já tinha escrito poesia há três ou quatro anos, é uma coisa meio esquisita mas foi aí que senti, não vou negar. Porque comecei a levar a poesia mais a sério. É uma poesia não muito simples, muito interpretativa, histórica. Às vezes faço pesquisas e análise histórica e linguística da poesia clássica chinesa e foi lá que deu essa vontade. Isso também contribuiu de uma certa forma. Porque quando voltei de Pequim já estava decidido que queria procurar algo e lançar o meu livro, dar o meu primeiro passo.

Falas na poesia como alavanca para a consciencialização. Para que temas queres que os teus leitores despertem?

Começo a pensar na consciência lá do meu bairro. Quando falo em consciência falo em algo social. Quero que o pessoal desperte a percepção das coisas, que elas têm um processo. É por isso que falei em “visão, direcção, acção”. Vem das palavras que o meu pai sempre fala, da luta para a conquista. É isso que quero, que o pessoal tenha essa consciência da luta, o lutar para conseguir algo. O pessoal do meu bairro pensou que é a esperar que as coisas vêm, e é isso que tento despertar. Não só do meu bairro mas para todos os que vão ler a poesia. Eu estive nessa posição em que se sente fracasso, é por isso que falo na luta para a conquista. Aquele momento de visão em que só se quer lidar e controlar os medos e traumas que aconteceram há muito tempo, que se carregam, mas tentam-se controlar e equilibrar. Depois, quando tenta equilibrar, encontra o silêncio para decidir. Porque você só decide quando consegue ver as coisas como elas são. Foi isso que eu fiz. Tentei procurar, acalmar a minha dor, fazer as coisas e tentar manipular a frustração. Você tem de manipular a frustração, controlá-la. Deixar sair a frustação que você quer. Essa é uma frustração que eu já manipulei, é boa. Quando a frustração é manipulada torna-se sensível. Então foi isso que fiz e tentei decidir as coisas. Como eu falo, em busca do sol de horizonte.

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Janique Heldon Correia Almeida
Janique Heldon Correia Almeida
5 Fev 2021 18:58

É um arepio d ler td isso ..mas na sua caminhada sei que sempre foste batalhador …
Fico me muito orgulhoso… parabens Mansa k Zerbo..Kapim

freireivandro24@gmail.com
freireivandro24@gmail.com
5 Fev 2021 20:31

Força irmão estamos juntos