Artes, Letras e Ideias hA livre circulação de meio milhão Sara F. Costa - 24 Set 2020 [dropcap]N[/dropcap]ão consigo regressar à minha casa em Pequim. As fronteiras estão fechadas desde Março. O único país a não deixar entrar pessoas com vistos de trabalho e autorizações de residência no Império, agora ao Meio, cheio de virtude, produção viral, agora pandémico. Lembro-me de quando era eu que lhes dava autorizações de residência e vistos dourados. Trabalhava em pequenas e médias empresas e era assim que eu falava disto aos amigos: Há pessoas a imitarem biombos nas pequenas e médias empresas. Ocupam uma cabine mas não precisam de separador, partes de si são documentos na mão, fios de telefones controlados, sorrisos chapa cinco a felicitar clientes como doentes em recuperação. Quem compra, recupera. Da boca informativa circula sangue comum. Laranja é a cor do poder porque não usa farda. Estantes derretidas em arquivos, emoções por ordem alfabética. A administração acampa no edifício, sorriso administrativo na altura de usar a boca. Braços para agarrar folhas, dedos furados profissionalmente. Empresas que são expansões de objectos subjectivos com exemplos que sobem por folhas de excel em flash. Computadores inquilinos em secretárias baratas. O vídeo do Turismo de Portugal mas com legendas em chinês, ou lá o que aquilo é. O chefe-general pede uma reunião e o exército feminino senta-se com frio na sala de reuniões, onde o ar condicionado está a 16 graus. O chefe-general está de fato. As mulheres de saia. Têm frio mas apanham balas de perdigotos como quem só não trabalha no Dona Maria porque é demasiado forte. O chefe explica: “Um círculo, dois SSss, um cliente chinoca, um edifício na baixa. A armadilha é a seguinte: queima-se-lhes as papilas gustativas na carrinha mercedes e põe-se os gajos num quintal. Não sabem onde estão. É Lisboa, claro.” Mas é no Montijo. A proprietária em stilettos rosa chanatos da feira (made in China) multiplica as comissões ou divide (made in China), não sabe ainda bem. Mas sabe que a ela ninguém lhe tira os órgãos num alçapão. Aqui, o alçapão é ela. A família chinesa trouxe os avós e os irmãos: vai haver negócio. A área bruta do quintal tem imensos benefícios fiscais e por isso o preço a pagar permite uma percentagem de retorno ao ano, pago de antemão pelo comprador. Tem que se inflacionar por causa da Caderneta Predial, obviamente. Mas isso pronto, é assim. O agente chinês traduz. Como se trata de um Edifício Classificado mais o marisco em Cascais, o agente precisa de uns 20% de comissão. Mas a proprietária tem na manga o Imposto do Selo. A ela não a enganam, tem várias leads. Foi o general que lhe disse. O exército vai operando, umas nas trincheiras, outras no acampamento. Há uma empresa de advogados premiados aberta trinta e oito horas por dia – não falha. Tragam os avós, os primos, o Union Pay, dinheiro vivo de gente morta. O mercado imobiliário está à mesma altura da livre circulação no espaço Schengen. Ao fim de cinco anos, têm a cidadania, claro. Sim, claro. Ao fim de cinco anos. Quem compra, salva-se. Uma cabo-adjunta leva a família para o Casino enquanto a Coronel se reune com o agente secreto. “Vão comprar a quinta ou o edifício na baixa?” “Eles querem o edifício da baixa mas querem mudar a fachada.” “Não podem.” “Dizem que é velha” “É antiga!” “E aquele T3 no Parque das Nações?”