Tenho um sonho

[dropcap]D[/dropcap]ia 29 de Maio, a imprensa divulgou uma notícia chocante. Um negro norte-americano morreu depois de um polícia lhe ter pressionado o joelho contra o pescoço durante nove minutos. O incidente desencadeou uma série de manifestações que acabaram por se transformar em motins. O Minnesota declarou imediatamente o estado de emergência. O agente foi acusado de assassínio e homicídio por negligência. As manifestações e os distúrbios alastraram-se a todo o país. Mas o que aqui está em causa não são os motins, mas sim a discriminação de que os negros têm sido alvo nos Estados Unidos.

O Mayor de Minneapolis Jacob Frey declarou pouco depois do incidente:
“Acredito no que vejo e o que eu vi estava errado a todos os níveis.”
Também pediu desculpa à comunidade negra e à família do falecido:
“À comunidade negra e à família, apresento as minhas mais sinceras desculpas.”
No entanto, esta atitude não acalmou os ânimos. Pelo menos uma pessoa morreu durante os distúrbios.

Alguns manifestantes incendiaram carros, destruíram e saquearam lojas. A Guarda Nacional interveio e o estado de emergência foi declarado no Minnesota.

O caso desenrolou-se da seguinte forma. Na segunda-feira um negro de 46 anos foi alegadamente preso por falsificação de dinheiro. Estava deitado no chão, algemado e o agente da polícia pressionava-lhe o pescoço com o joelho. O homem acabou por morrer. Estes acontecimentos foram filmados por um transeunte, que posteriormente colocou as imagens no YouTube. Enquanto pressionava o pescoço do detido com o joelho, o polícia tinha uma mão no bolso e ouvia, com um ar absolutamente impávido, a vítima implorar:

“Por favor, deixe-me respirar.”

Os agentes da autoridade só precisam de usar a força suficiente para subjugar os suspeitos e impedi-los de fugir. Um suspeito deitado no chão e algemado não pode fugir. Neste caso a pressão exercida pelo joelho é claramente uso abusivo da força, já para não falar de crueldade. O agente foi dispensado do serviço e acusado de assassínio e homicídio.

A dupla acusação de assassínio e homicídio por negligência é um artifício da Procuradoria para impedir o réu de escapar à justiça, pois se fosse acusado apenas de assassínio seria necessário provar que houve intenção de matar. A acusação de homicídio suplementar vem preencher esta lacuna. Na eventualidade de não vir a ser condenado por assassínio, existe uma forte possibilidade de vir a ser condenado por homicídio por negligência, crime onde a intenção de matar não é condição sine qua non.

Este caso vai ser seguramente julgado com a presença de um júri. Os jurados serão brancos ou negros? Como proceder para garantir que não serão discriminados por motivos raciais? Esta questão vai certamente ser assunto de notícia. Outro tema que também vai interessar a opinião pública é o destino dos outros três agentes presentes no local. Irão ou não ser acusados de cumplicidade, ou de recusa de assistência à vítima?
Michelle Bachelet, Alta-Comissária dos Direitos Humanos da ONU, afirmou que nos Estados Unidos a discriminação racial é “endémica” e está em todo o lado. Segundo ela, o país tem de tomar “medidas sérias” para prevenir incidentes deste género.

Nos Estados Unidos, a história da tentativa de emancipação dos negros remonta ao tempo de Lincoln, o 16º Presidente, que ocupou o cargo na década de 60 do séc. XIX. Em 1954, Martin Luther liderou o boicote à utilização de transportes em Montgomery, um movimento pelos direitos civis, que recorreu a formas de protesto não violentas e que culminou com a promulgaçao da Lei dos Direitos Civis em 1964. Esta lei estipulava o fim do apartheid, da discriminação dos negros, das minorias e das mulheres. A Lei do Direito de Voto, aprovada em 1965, assegurava que os negros americanos não seriam privados do seu direito de voto.

A 28 de Agosto de 1963, num emocionante discurso que ficou para a História, Martin Luther proferiu a célebre frase “I Have a Dream”.

“Tenho um sonho. No meu sonho, virá o dia em que, neste país, os meus quatro filhos não serão julgados pela cor da sua pele, mas sim pelo seu carácter.”

As aspirações de Lincoln e de Martin Luther concretizaram-se com a eleição de Barack Obama, o primeiro Presidente negro dos Estados Unidos. Um negro foi institucionalmente reconhecido como a figura suprema do país. Durante a campanha de Obama, o lema “I have a dream” foi adoptado como slogan. Este Presidente negro é sem dúvida representativo da História Americana.

Embora a América tenha tido um Presidente negro, ainda é preciso lutar para que não haja discriminação na justiça e no tratamento policial. A frequência com que os negros são maltratados e mortos pela polícia americana, levou o Mayor Jacob Frey a afirmar:

“Ser negro na América não pode ser uma sentença de morte,”
Um conjunto de vários factores ainda faz pensar que os negros continuam a ser vítimas de discriminação. Esta discriminação é sobretudo social. Entre Lincoln e Obama, existiu um lapso de 160 anos, no qual a discriminação foi eliminada dos sistemas político e jurídico. Quantos anos serão ainda necessários para eliminar a discriminação social? Para que isso aconteça é preciso vontade política e uma pedagogia constante, para que a situação vá melhorando a pouco e pouco. Para já, não existe nenhuma medida milagrosa que possa acabar de vez com a discriminação.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

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