O inimigo

[dropcap]O[/dropcap] mais recente romance de Anibal Antunes começa assim: «Lá em baixo na rua os carros buzinam na avenida em protesto ou apenas avisando outros veículos que o semáforo passou de vermelho a verde. Os turistas, vindos de terras distantes, de onde o sol foge, povoam as ruas, as praças e as esplanadas com os braços descobertos. Os humanos continuam a reunir-se à volta do sol como se a solidão não nos fosse natural. O sol de Inverno descobre em nós os restos de alegria ou de optimismo que nem sabíamos que ainda nos habitava. Dentro do apartamento, Afonso, esforça-se por querer viver, por encontrar uma migalha de sentido para continuar ao longo dos dias. Talvez o verbo esforçar não seja bem o que descreva a sua atitude. Talvez o verbo que melhor descreva a sua atitude neste dia de sol seja resistir. Nesta segunda-feira, aos 70 anos, Afonso resiste. E até ao fim é o que lhe resta.» É um começo que nos dá de imediato o tom do livro: a solidão. Que devemos fazer perante tão poderoso inimigo? E, completamente sós, devemos resistir para quê? Para quê prolongar os dias de trincheira? Para quê prolongar a vida, se ela se apresenta dia a dia como um inimigo a que temos de resistir e não como alguém com quem partilhamos os dias? Afonso nem sempre fora assim, evidentemente. Ao longo de 70 anos não teve sempre a vida como um inimigo.

Ao longo do romance, das suas trezentas e poucas páginas, acompanhamos a vida de Afonso ao longo de várias décadas. Na verdade, sempre fora um cretino. Um indivíduo que se preocupava apenas com o seu trabalho e com o seu prazer. Gastou a vida em noites. Até aos 50 anos, poucos foram os dias que viu amanhecer. Tinha sido jornalista e reformara-se há cinco anos (o romance começa em 2016). O seu ódio à vida – aparece escrito logo à página 19 «Afonso odiava ainda mais a vida que a alegria displicente e sazonal do turista» –, aparece depois da morte da mulher, Carmo. Afonso conhecera Carmo há quinze anos e casaram-se pouco depois. «Afonso aceitou Carmo como um condenado aceita uma amnistia, a derradeira oportunidade de vida». E assim fez. «Agarrou-se à Carmo como a uma tábua em alto mar. Fez dessa mulher a razão de vida. Por ela foi capaz de deixar de dizer mal de tudo e de todos. Conseguiu perdoar-se a próprio em primeiro lugar, pois ninguém diz tanto mal sem que seja por não conseguir se suportar, por não ter sido quem gostaria de ser. Com Carmo passou a gostar de quem era.»

Não é um livro de conversão. Quando o romance começa, nessa segunda-feira, faz um ano que Carmo morrera por atropelamento. E não podemos esquecer que o fundo do livro, como o próprio título indica, é o inimigo. «A minha solidão tomou forma, dizia Afonso para si mesmo enquanto ia buscar outra garrafa. Era um modo irónico de falar da ausência. Mas a ausência é já em si mesma uma ironia. Ela ri-se de nós, da vida humana, deste estar aqui sem propósito aparente. A grande invenção humana é a ironia, não é a roda.»

Afonso via agora a sua casa como um túmulo. Na verdade a palavra que Anibal Antunes usa para descrever a casa depois da morte de Carmo é «sarcófago». Lê-se à página 34: «Poucos minutos depois de ter ido até à mercearia, Afonso voltava para o sarcófago.» Mas veja-se também páginas a seguir, o modo como o narrador descreve a casa. A descrição começa como se ainda houvesse alegria ou, pelo menos, vida, terminando por mostrar-nos a situação actual. No fundo, a descrição começa como se Carmo ainda fosse viva e termina com Afonso no sarcófago, e tudo isto num pequeno parágrafo: «O apartamento, no quarto andar do prédio, é atravessado de lado a lado pela luz. Virada a oeste, uma das salas tem cinquenta metros quadrados e duas enormes portas de vidro que dão para a varanda. É aqui que estão os livros e onde ouve música. Hoje é apenas uma câmara onde habita a sua solidão maior. Nem o som de Orfeu de Monteverdi, uma das obras preferidas de Carmo, conseguia reconverter o sentido da vida. A morte de quem amamos é uma metáfora da vida.»

O romance tem o tempo efectivo de uma semana. Vai de uma segunda-feira a domingo. E nesta semana andamos décadas para trás e para a frente, como se fosse a nossa memória, a nossa vida. Aos 70 anos, Afonso não era um homem velho e nem assim se sentia. «Ele não estava velho, estava ferido de morte e arrastava-se. Como um touro depois de uma lide, arfava no meio da arena com os ferros espetados no dorso, escorrendo sangue e espuma pela boca. Tudo à sua volta, era o inimigo.»

Os romances de Anibal Antunes são sempre centrados em figuras únicas, que se arrastam sós ao longo dos romances. Lembremos a figura de André Jovial, em «E Depois Nada», político que salta de partido em partido até terminar os seus dias na prisão, por denuncia da filha acerca das suas traficâncias de poder e dinheiros; ou a figura de Anabela Viseu, em «O Sol Negro», acompanhante de luxo em Lisboa, que acaba por casar-se com um magnata árabe e se torna mais escrava do que era prostituta. Mas é a primeira vez que Antunes nos apresenta um herói verdadeiramente trágico. Um herói que enfrenta a morte com a dignidade de quem sabe que não merece continuar a viver. Porque, diz ele, quase no final do livro: «Todos merecemos viver. Mas só cada um sabe se merece.» Fiquemos por aqui.

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