h | Artes, Letras e IdeiasQuarentena a dar que pensar António de Castro Caeiro - 24 Abr 2020 [dropcap]É[/dropcap] inegável o misto de sentimentos com que a quarentena provocada pelo Corona vírus tem sido vivida. Há um estado alerta generalizado, nacional e internacional, à escala local, monitorizada pelo poder de uma câmara municipal, e à escala global. Importa a atenção dadas às notícias a nível global. Interessa-nos tanto o que se passa na avenida Marginal quanto o que se passa no parlamento europeu, em Wuhan como em Washington. O mundo é global e local, regional. Basta ver os boletins informativos para percebermos que a epidemia pandémica provocada pela Covid-19 tem consequências microcósmicas, nas casas de cada um, nas medidas que cada um adoptou para si a pensar nos outros. Não apenas nas novas medidas como distanciamento social medido ao centímetro, forma de tossir para o cotovelo, lavar as mãos amiúde, uso de luvas descartáveis, máscara. Mas todas as nossas acções, comportamentos, relação com os outros, explícita ou implicitamente estão envolvidos por um filtro ou ecrã total que erguemos entre nós e os outros, todas as coisas em que tocamos, peças de mobiliário, volante de automóveis, interruptores, electrodomésticos, etc., etc.. Mas também entre nós e nós adoptámos medidas assépticas. Lavamos as mãos, não levamos a mão à cara, não nos coçamos, esfregamos os olhos. Estamos vigilantes. Evitamos os outros como evitamos ir até à proximidade dos outros. Trabalhar a partir de casa, não ir à rua a não ser quando é estritamente necessário, não ver ninguém a não ser aqueles com quem partilhamos o quotidiano e sabemos que não poderíamos evitar terem sido para nós com nós para eles agentes recíprocos de contaminação. Há, assim, uma camada virtual com consequências físicas a evitar o contacto directo, de proximidade, com o mundo na sua totalidade, com os outros principalmente e com as coisas em que os outros podem tocar. Tornamo-nos solipsistas uns relativamente aos outros. Mas isso não quer dizer que não pensemos nos outros ou não falemos com eles por todos os meios que temos à nossa disposição. Falamos com amigos no estrangeiro com quem não falávamos há anos e amiúde com quem falamos raramente. Há uma causa comum à sociedade. Há um envolvimento de toda a gente nesta causa comum a nível planetário. A alteração do modo como exercemos as nossas actividades, o fecho de algumas actividades e a abertura de outras, a transição do espaço aberto da rua para o espaço fechado da casa, o colapso do espaço físico real, a construção do espaço virtual: são algumas das acções que foram e têm sido levadas a cabo. O espaço físico e real é tão virtual como é físico e real o espaço em que abrimos o computador, a cadeira em que nos sentamos. Mas há uma diferença entre a vivência de espaços com o direito à reserva de admissão e sem essa reserva. Há uma diferença entre a interdição e o levantamento de interdições, entre proibição e não proibição. O que acontece é que a rua ficou fechada e a casa ficou a ser o sítio mais aberto que temos à nossa disposição. A casa não ficou aberta nem a nós, porque já dispúnhamos dela, nem aos outros que agora nem sequer cá podem vir. O privado não se tornou público nem o público privado em geral. Sucede que muitas das situações em que nos encontramos passaram a ser controladas a partir de casa. O espaço público passou a ser partilhado virtualmente a partir da casa de cada um, e entramos no chating que foi inaugurado pelos voyeurs de pornografia e violência, youtubers, jogadores de jogos virtuais. O lazer, o brincar, o jogar, o que se faz para passar o tempo passou a ser a possibilidade estruturante das actividades sérias da vida. Por outro lado, há uma imposição de regime que resulta da disciplina. Procuramos ter uma vida mais saudável: fazer desporto, como se vai menos às compras, faz-se uma previsão e um cálculo diário do que se vai comer, temos cuidado com os mais velhos e com as crianças que vieram para ficar 24 horas por dia em casa. Vivemos num esforço contínuo de antecipação, quantas pessoas adoeceram e quantas morreram, quantas se curaram e quantas se irão curar? Quando saímos da situação de emergência? Com que custos? Como vai ficar o desemprego? Como seremos abalados na nossa saúde física e financeira? Existimos no modo de sobrevivência. Compreendemos ou ficamos sensibilizados para os níveis de stress em pessoas que são obrigadas a passar mais tempo juntas do que habitualmente. Muitas nem sequer estiveram alguma vez a sós consigo mesmas. Mas não pode haver uma tensão total para que de tão rígida fiquemos paralisados. A situação é crítica a diversos níveis. Não se sabe quando passa nem como passa. A indefinição não poderá manter-se para sempre. Mas não pode haver fuga para a frente em que se deite a perder tudo o que foi alcançado com a quarentena Temos de guardar a calma. O impacto de totalidade implica uma reorientação, um redireccionamento, que levem a uma focagem que resulte de uma compreensão do que é importante e do que não é importante, se temos o que necessitamos ou não, se somos o que fazemos ou fazemos o que somos, se a vida é desperdiçada com o que não tem significado nem importância. Não estamos sozinhos. Temos as gerações passadas para nos ajudar com os relatos que nos deixaram, cartas endereçadas do passado para nós seus irmãos posteriores. Do mesmo modo a nossa responsabilidade é com os nossos contemporâneos, velhos, novos e os que estão ainda por nascer. Importa esgotar as possibilidades que são criadas na impossibilidade e no caos.