O Chico Esperto

[dropcap]C[/dropcap]omecei a escrever este artigo por impulso na noite de segunda-feira passada, faz hoje uma semana. A relativização e verborreia surreal sobre a pandemia nas redes sociais impulsionou-me a escrever esta carta de amor ao mitra que chama “sócio” a estranhos e ao doutorado em “eu é que sei”.

Quando escrevi a primeira parte desta crónica ainda não havia fotos da praia de Carcavelos cheia, ou festa do coronavírus em Aveiro. Mas tenho de dar a mão à palmatória e referir que, desde então, Portugal acordou um pouco do torpor fantástico que por vezes coloca o país noutro planeta, imune à realidade.

Assim sendo, este retrato social já chega um pouco tarde, mas ainda existem largas bolsas populacionais destes espécimes que sabem muito mais sobre epidemiologia que a comunidade científica, ou que atravessam uma fase de pouco amor à vida. Mas, aqui vai o retrato social dos dois polos da perigosa relativização do momento histórico que o mundo está a atravessar pelos piores motivos.

O Covid-19 trouxe à luz do dia o espectro amplo do chicoespertismo luso, transversal a todas as classes. Vai do mitra do bairro ao indivíduo culto mais bem informado.

Para o mitra, a reacção marialva à epidemia faz parte da sua génese, é algo que constitui a sua identidade, antes de desatar a chorar e a clamar pela santa mãezinha que está no céu, agarrado ao crucifixo. Até lá, ladra barbaridades do género: “oh, essa constipação chinoca é para meninos, eheh [escarro no chão]. Eu? Alguma vez? Tá-se mesmo a ver, agora despentear a bigodaça com essas máscaras panascas! Mas eu ando aqui a comer gelados com a testa, não?! Isto é tudo uma cambada de gatunos, é o que é, só querem roubar o Benfica. Um bagacinho e isso vai ao lugar”.

É natural que o mitra reaja com ignorância brutamontes, é a única coisa que conhece. Reage ao coronavírus como reage ao orçamento de Estado, que não compreende, ou ao nascimento de um filho, que também lhe escapou às contas.

O gajo informado é, naturalmente, mais complexo, mas partilha um factor essencial com o mitra. Nada o ultrapassa no que toca à interpretação da actualidade. Ambos lêem o mundo de formas diferentes, mas interiormente são experts em saúde pública, epidemiologia e todas as categorias do Trivial Pursuit. Ah, e em gajas, claro, não estivéssemos nós nas pastagens do marialva lusitano, essa manifestação quasi-equestre, o mito fantástico entre o Eduardo Prado Coelho e o Zezé Camarinha.

Regressando ao gajo informado. Ninguém lhe passa a perna. Ui, era só o que faltava. Então e as coisas que leu e/ou escreveu online, plenas de sentido de humor, acutilância e crua e desapaixonada factualidade? Mesmo que por vezes resvale para asserções parolas pseudo-poéticas, à la Gustavo Santos, do género “o medo é que mata, não o vírus”.

Está visto que tudo não passa de alarmismo desenfreado, um golpe nas nossas liberdades, uma gripe um bocado mais chata, uma deriva autoritária, o resultado de vivermos num Estado mamã, etc.

O indivíduo informado, de repente, transforma-se no fã nº1 do Glenn Beck, que achava que os FEMA camps do tempo do Obama eram campos de extermínio de rednecks patriotas.

A pessoa culta torna-se num ser que não consegue distinguir entre pânico e prevenção, imune a lições importadas de casos de sucesso ou de trágico insucesso. Num ápice, o gajo que leu tudo de Sartre a Eco, passando pelos clássicos, torna-se no mitra que encara a ciência como uma agremiação de marrões que não deixam copiar nos exames e que nunca beijaram uma mulher.

De repente, tudo é uma conspiração para sabe-se lá o quê. No meio de tanta desinformação e da cobertura pornográfica das televisões portuguesas, que causaram fatiga de coronavírus, perdem-se muitas oportunidades para se estar calado e não dizer alarvidades. Oportunidades que o chicoespertismo nunca desperdiça.

O chicoespertismo tem acalmado nos dias que correm. As chapadas de realidade são pequenos cursos introdutórios à humildade, mesmo que no íntimo sobreviva aquela chama rebelde do cepticismo. Não estou aqui a defender que o poder político é um esteio de pureza, pelo contrário, é uma fossa séptica onde a decência se afoga. Mas não é necessário puxar a ciência para esse lodaçal onde um porco parece um bicho asseado.

Para já, gostaria que a prudência e o bom-senso fossem a nota dominante do futuro próximo do meu país. Para o bem de todos, inclusive dos “chicos espertos”.

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