A outra face VozesOs infectados Carlos Morais José - 12 Mar 2020 [dropcap]C[/dropcap]ada infectado é meu irmão. Bro’, sis’, brother, wathever… Je suis infectado! Estou convosco por condição. Há muito que estou doente, profundamente doente de um sem-número de maleitas inomináveis mas que, sem pudor, tenho transmitido aos incautos. Sim, aos incautos com quem não me abstenho de conviver. Socializo, vou a reuniões, frequento festas, deslizo pelas ruas, entro em cafés, almoço em restaurantes, chego-me às pessoas. Aí, nesses lugares plenos de humanos indefesos, tusso, contido, aforismos; espirro orações pagãs; verbalizo blasfémias e espero pelo resultado. Sim: tenho contagiado muita gente, uns meros inocentes que passavam, outros claramente culpados que só esperavam por um momento qualquer para dirimir a culpa. Passei a doença à minha filha; peguei-a à minha mulher. E isto, como devem imaginar, foi de menos. O pior devia estar para vir. Entretanto, enquanto nada se passava, num dia sem chuva, sem sol ou presságio de nevoeiro, chegou um coronavírus, vulgo covid-19, criando uma série de mal-entendidos. É que a doença já cá estava, em nós morava e sem pagar a renda. Também não era uma prenda que nos tenha sido ofertada. Não: era o azeite, era a banha, a manteiga; era o óleo de girassol, de amendoim, de canola: o que vinha ao de cima, depois de muito espremido e destilado o coração. E foi preciso uma epidemia para que essa nossa gordura, a nossa gordurosa verdade emergisse, na tona manhosa das noites ou à superfície rançosa dos dias, consoante os horários de cada um. Há muito tempo que estamos infectados. A doença não é nova: temo-la há muito, repito. Possuímo-la. Acarinhamo-la, como a tudo o que é nosso e, provavelmente, com dificuldade viveríamos sem ela. Fazemos amor com essa doença quando cuidamos ninguém estar a olhar. Não haver câmaras. Pois cada um de nós é um infectado e, nessa estranha medida, constitui um perigo para o outro. Graças ao covid-19, finalmente assumimos: usamos máscaras, luvas, óculos protectores e evitamos mãos, lábios, faces, corpos alheios. Fico com o Ti digital, ok? E tu com o Mim. Para quê a proximidade, afinal? Temos o cabo e temos a net, temos o flix. O uber e o eats. O outro no seu lugar: na distância física: onde deve estar. Compro sem tocar. Pago sem papel. Exijo a desinfecção. As gentes limpas. Médicos orgânicos. Amigas biológicas. Menos não será suficiente. E as empresas que o asseguram e o garantem digitalmente por escrito. Enviam para o email. Depois desparecem e cada negócio é coisa de uma noite: mágica. Volta a doença. Não: não se trata de uma doença nova. Nós temos a doença: cada ser humano está infectado e é fatal para o outro. Perdi o que tornava suportável a tua companhia, o que me garantia ser capaz de realmente te aturar, de te olhar, de te ouvir, de realmente te tocar, de te conhecer (meu deus, que seca!)!…, como se realmente existisses. Lembro-me… mas como parece distante… coisa de outras eras… de outras gentes, assim tipo Neardanthal ou Cro-Magnon… Antigo Regime ou Pós-II Guerra, gentes do passado, habituadas a bizarros costumes… Estamos fechados em casa. Onde se está bem. Supermercamos e regressamos como se de Tróia viéramos: cansados. Mas não vimos de lado nenhum. Nenhum lugar há para ir. Mas ainda a precisar de reconstruir arquétipos, continuar a peça, representar qualquer coisa: um papel tíbio, que não perturbe, não contagie, mas ainda assim presente como um fantasma ousa estar presente numa mente temerosa e oca. A obrigação de fazer qualquer coisa. E a nossa casa é igual à casa seguinte e passasse mais ou menos a mesma coisa, mais net e menos flix, mais face e menos book (pouco importa), sem que saiba se isso efectivamente me irrita ou, pelo contrário, me conforta. Uso máscara. Sempre usei, só que ninguém dava por isso. Agora uso duas. Agora é importante saber que se está infectado. Ter consciência aguda do seu próprio estado. Compreender o mal que se pode passar aos outros. Ser o impaciente zero. Onde me pode levar tamanha ousadia?… Por vezes vou ao restaurante… arrisco. Doutras não sei o que fazer porque qualquer acção me parece inútil, pré-programada, como um destino perante o qual não sobra sequer a vontade de ser espectador. A vontade de tão diluída: fantasma. O mundo sem os outros não interessa. Com eles também não. É o que a doença nos ensina. Não é de agora. Nem do vírus coroado rex. Seria bom, seria útil, será impossível: talvez uma peste, um dia, nos faça cair a máscara. A nós: os infectados.