Umwelt V

[dropcap]N[/dropcap]a sua investigação, O Espaço Vital da Criança na Grande Cidade (Der Lebensraum des Großstadtkindes 1935), Martha Muchow identifica o mundo infantil e o mundo juvenil em contraste com o mundo adulto (dos crescidos). A palavra para mundo que usa é Umwelt. A palavra em alemão traduz milieu das humanidades (filosofia política, sociologia). É, porém, com as investigações biológicas de J.J. v. Uexküll e as suas reflexões teóricas sobre a sua actividade científica que Umwelt se instala. A problemática a que lhe está associada alastra para as ciências humanas e para a filosofia. Os pensamentos filosóficos podem estar durante séculos, que digo eu, podem estar milénios até, adormecidos. Estão adormecidos na “cabeça” ou na “mente” de quem espera apenas a oportunidade para acordar. A vida do “espírito” — palavra que quer dizer tanta coisa (fui ao Google, escrevi “Espírito”, deu-me: ‘Cerca de 246 000 000 resultados (0,53 segundos)) — é radicalmente diferente de qualquer outra forma de vida, tem outro “ser”, como dizem os filósofos, existe de forma intermitente numa geração e pode influenciar gerações que viveram séculos separadas umas das outras. O prefixo “Um-” quer dizer em “em redor”, “à volta”. Mas em Um-Welt não se trata apenas de expressar uma ideia espacial bi-dimensional, como se um ser vivo, uma planta ou um animal ou um humano, tivessem campos naturais circulares para a sobrevivência, delimitados por circunferências que esboçavam as zonas limite, além das quais sairiam das suas zonas de conforto. O prefixo quer dizer tal como a expressão composta em português “meio-ambiente” precisamente uma estrutura tridimensional. Tri-dimensional, pelo menos, à partida. Falamos de ambiente nesta expressão quando falamos de estudos do “meio”. Aqui, encontramo-nos no domínio da moderna ecologia em sentido estrito de técnicas que procuram salvaguardar o planeta, não destruindo o que se pode salvar e tentando recuperar o muito que foi destruído. Em sentido lato, ecologia é uma disciplina filosófica que tem como objecto o modo de lidar com o mundo tal que se possa compreender como se torna acolhedor o que é inóspito e se pode habitar o planeta Terra, mas também quais são as estruturas ínsitas e subjectivas de que somos portadores que são exportadas do nosso interior para mobilar uma casa que é predominantemente constituída apenas por elementos. Por exemplo, como é que de um monte extenso de areia se faz uma praia, como é que de um volume imenso de água se faz um mar para nadar, como é que de uma rocha côncava fria e inóspita se faz casa. A Umwelt é assim um mundo envolvente, um mundo ambiente, que não se circunscreve a círculos no interior de circunferências, nem ao traçar de fronteiras entre o aquém da habitabilidade e o além da habitabilidade, entre o aquém do habitual normal e o além do inusitado insólito, entre o aquém da zona de conforto, acolhedor e hospitaleiro, e o além que sai para fora da zona de conforto, inóspito, estranho, perigoso, angustiante. A Umwelt é como v.

Uexküll descreve, mantendo a metáfora geométrica um globo. Os problemas que se põem com esta concepção do mundo são tão fascinantes como angustiantes. Em primeiro lugar, todo o estudante de filosofia que se apegue à modernidade, e mesmo referindo todo o estudante de ciência que, com o seu escrúpulo de racionalidade, tenha formado uma representação do mundo como uma substância material e corpórea e no limite: extensa, o vasto cosmos, o universo visto através do reticulado cartesiano X, Y, Z, passa agora a ter de ser ver “enfiado”, “metido”, num mundo globular, abobadado não apenas para cima mas também para baixo e para cada um dos lados, o que é mais complicado. A outra das perguntas interessantes a fazer é se este “globo” que é o mundo à distância é aparente ou é real e objectivo. A abóbada celeste é real ou é aparente? A linha do horizonte que divida o mar do céu é real ou é aparente? Ou somos nós portadores do próprio “globo”, nós e cada animal, cada planta, cada ser vivo, terá uma textura que encontra porque está já preparado este globo no mundo em si ou, antes, cada ser vivo traz consigo o seu próprio mundo “globular”? Assim, ao transplantarmos uma planta de um solo onde se encontra enraizada para um outro solo, por exemplo, uma vinha de Bordéus para a Califórnia, o fazemos porque vamos encontrar solos idênticos, clima idêntico, etc., etc., ou fazêmo-lo porque a vinha, a uva, o grão da uva é portador geneticamente da estrutura mundana globular que se pode expandir nesse outro sítio e nunca num outro solo que lhe fosse inóspito, hostil, destruidor? O mesmo se passa para cada mundo global, globular, no meio do qual cada ser vivo, planta, animal ou humano existem. Cada ser vivo existe no interior de uma esfera, numa redoma transparente, mas não se apercebe de que todos os conteúdos estão já a ser vistos, transformados em todos os campos sensoriais por películas que recobrem não apenas as fronteiras anatómicas do corpo dos seres mas também as superfícies e os interiores das coisas que aparecem nos mundos de cada animal, planta ou ser humano. Assim, como dizia v. Uexküll, a um cão só aparecem objectos caninos, não aperecem objectos humanos. Um osso com o qual um cão brinca parece ser o mesmo objecto para um ser humano, mas não vemos um ser humano latir, saltar, correr atrás de um osso como um cão, nem depois de correr para o apanhar, com a cauda a dar a dar de contentamento, não o vamos entregar a quem o tiver atirado, ao nosso dono. O osso do cão é diferente do osso para o ser humano. Os objectos para o ser humano são objectos humanos. Mas a pergunta pode ainda ser feita de forma mais radical. Pode acontecer que um modo global, o globo em que eu existo seja diferente do mundo global, do globo em que “tu existes” e de tal modo diferente que nem eu nem tu partilhamos do mesmo globo ou antes o que chamamos o mesmo globo é um mundo global, globular também, mas partilhado e comum e, por isso, diferente de cada um dos mundos individuais que, por serem individuais, são impermeáveis de pessoa para pessoa. E de forma ainda mais radical, poderá acontecer que o mundo que outrora habitamos quando éramos crianças se perdeu no fundo dos tempos?

Não terá acontecido o mesmo para o mundo da juventude? É o que queremos saber com Martha Muchow para a semana.

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