de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasMais lugares que marinheiros Anabela Canas - 30 Dez 2019 [dropcap]D[/dropcap]ias antes e já a pantalha luminosa se acendia intermitente a deixar ver. As luzes no máximo como para não nos perdermos no caminho. Um prévio cometa Halley a guiar. As pessoas são tão contidas. Em si próprias, muito embora por vezes a exorbitar numa espécie de sudação subliminar. Em que se pressente uma enormidade de inferências, de subentendidos e de consequências que temos que saber aparar no regaço. Estendo a mão. Mas não toco no que não se quer tocado. Nós não somos tristes, somos fundos e por isso não somos simples. Conto. Volto a contar. São as contas do Natal. Porque exorbitaram as continhas vermelhas do azevinho, tão raro, em grandes bolas de árvore de natal? Porque de tão raro, o que era espontâneo quase se extingue. Agora as poinsétias. Grandes e extravagantes estrelas de outro continente. Ceia de Natal. Não há lugares vazios. O tilintar de copos e as conversas inconsequentes, coisas práticas e insignificantes. Também já contamos histórias. Shhhh…é só um pequeno movimento para dentro e oiço-os chegar devagarinho. Como um nó na garganta. Sentar-se sossegados, com as expressões inesperadas que o inconsciente laborioso lhes coloca nas faces antigas. Antigas, mas por vezes tão jovens, afinal. Não se sabe, antes, com que rosto vão surgir. E ficam ali quase luminescentes, a ocupar solidamente um espaço para o qual foram convidados. E ficam. Até que o nó se desfaça e alguém diga um disparate divergente. E eles não suportam o esquecimento. E assim se vão. Mas não muito longe. Vamos olhar uns para os outros, felizes mas secretamente a fazer contas aos que faltam. Ainda não habituados. A ter que contar quantos somos agora, várias vezes porque é um número novo. Um dado novo para este jogo. Mas felizes de ainda nos termos uns aos outros. Os mais velhos foram-se retirando definitivamente da mesa. Ao seu tempo. Deixam-nos como sozinhos em casa para continuar. Mas na verdade, começamos outros de nós, então, a ser os mais velhos e a olhar em volta com desconfiança como quem diz vamos lá a ver se ninguém sai daqui sem autorização. Vamos estendendo a toalha agora comprida demais, pondo a mesa caoticamente e retocando cozinhados e compondo pratos com uma enorme seriedade e como se uma epopeia que não se destinasse somente a nós. Mas sabemos secretamente que ainda há vários lugares vazios, por mais que se não coloquem visíveis à mesa. Que ainda não foram absorvidos pelas ausências que os ocupam. Fingimos que não é nada connosco. Sabe-se lá se cada um reza aos seus santinhos. Que chegam e ficam ali como parceiros discretos a aconselhar sobre o ombro qual a carta a jogar. Depois sentamo-nos. Só nós e quem naquele exacto momento se abeira de cada um à vez e sopra um invisível murmúrio. A saudade é seguramente nossa. Como um altar íntimo e doméstico. Do culto aos que passaram e nos deixaram. Só não temos coragem de deixar laranjas e papéis de queimar visíveis, para não nos entristecermos uns aos outros. Somos tão púdicos. Ninguém vai dizer nada. Já se disse, outras vezes. Mas lá para o final da primeira garrafa, algo um pouco desajeitado há-de surgir. Mal planeado, e irreprimido. Só nós agora. Qualquer coisa assim. Como miúdos à solta. Ainda um pouco desajeitados desta ausência dos mais velhos. Que somos agora nós. A fazer este papel no seu melhor, porque é mais difícil fora da marcação. E precisamos dele. Que nos ligue e continue a ligar. Depois nunca se deixam as velas arder até ao fim. Um pouco de luz possível para o dia a seguir. Reacender. E sobra sempre tanta cera mesmo depois. Aprendi que a única coisa que se esgota demasiado depressa é o pavio, de algodão. Mas substituindo por um novo, há muita cera para arder ainda. Derreter sem arder, moldar a nova forma, pavio novo e nova vela. Sem as cores nítidas da antiga, mas a luz é sempre luz. Família, quando temos, é o que temos. E depois da consoada, ficamos de novo a sós. Meto a chave à porta. Abro a porta de casa e descalço os sapatos para não fazer barulho. Estás aí. Que não gostas do natal. E fazes bem, à falta de melhor. Dispo a roupa simbólica de estar especial e fico para ali, sem nada. E aí sim, essencial. Se estás. Deito-me ao lado exausta. Voltada para ti. Suspiro fundo. Agora só daqui a um ano. Sorri por favor. Vejo-te mesmo no escuro. Tocamo-nos ao de leve e não há nada melhor. Do que a enormidade da distância que se vence, percorre e anula nesse gesto invisível e definitivo em si. Em que se nasce ao espelho táctil do outro ali. Reinado enorme e eu pequena. No simples espaço curto da cama. Não é preciso ser maior. Já basta a amplitude dos temores, das noites, do abandono de deuses. E chega. Chegando de mansinho. Não estou só porque tive a sorte de não nascer só. Solitária, sempre. Uma coisa da espécie. Monticola solitarius. E digo, agora nós. Não digo finalmente sós, o que seria ingratidão. Mas digo. Agora nós. Só. E fico. E porque todos os anos mesmo os temores se renovam como recém-desembrulhados no meio das outras prendas de natal, pergunto como sempre: estás aí? E tudo está certo como sempre, a postos para recomeçar como se do início de tudo. Depois, fim do ano, ano novo e vida nova. Até ver. Naquele escasso momento em que troam e florescem as últimas luzes do fogo-de-artifício. Vistas da janela pequenina. Acordo no dia já bem claro. Encolho as pernas, puxo a roupa e viro-me para o lado a pensar que o dia vem longo. Percorrer o mercado de doces à procura de algo que se aproxime dos sonhos da infância. Leves e cremosos e pastéis de massa estaladiça. Em caixas de cartão para logo. Há que guardar tempo para me arranjar. É preciso que cada um esteja no seu melhor. Um pouco de maquilhagem para a consoada. A família merece. Ou eles, saber que estamos bem. Ou eu.