A miúda que veio dos céus

[dropcap]M[/dropcap]aphiyata echiyatan hin win” – ou “A mulher que veio dos céus” – foi o generoso nome que os índios Lakota atribuíram a Greta Thunberg, quando a jovem sueca visitou recentemente os grupos indígenas da Dakota do Norte e do Sul, nos Estados Unidos da América, cujos territórios estão ameaçados pela anacrónica construção de um oleoduto: mais petróleo em movimento, mais emissões de carbono, menos qualidade ambiental, mais lucros para as grandes empresas petrolíferas, menos direitos para as comunidades indígenas. Agradecidas, pois. Também eu. E muitos e muitas mais por esse mundo fora. Vamos a isso, então.

Estamos nas vésperas de mais uma Cimeira do Clima promovida pelas Nações Unidas. Já no ano passado, por esta altura, António Guterres usava da sua palavra de secretário-geral para apelar à “economia verde em vez do cinzento da economia carbonizada”. As alterações climáticas “avançam mais rápido do que nós”, afiançava.

Debalde, evidentemente. Ainda se podem ler nos arquivos digitais da imprensa daquelas datas as notícias e reportagens que mostram com evidência como os impactos da mudança climática são maiores e de mais drásticas consequências do que se pensava. De então para cá, as coisas só pioraram: mais evidências científicas, mais catastróficas inundações, mais pobreza: as alterações climáticas tornaram-se a maior causa de desalojamento populacional no planeta, os problemas tendem a aumentar e não se vislumbram ações convincentes para os contrariar. Nem grande vontade política, diga-se.

Sobram então as pequenas vontades, o que já não é tão pouco. “Não subestimem a força dos miúdos zangados”, avisou a petiz à sua chegada a Lisboa, depois de longa e atribulada travessia do Atlântico. Cansada e tímida, a adolescente foi recebida com o entusiasmo solidário de quem se revê na causa e na urgência da resposta ao problema e com a hostilidade mediática de uma parte significativa dos protagonistas do espectáculo da política quotidiana – estejam eles nos estúdios das televisões, nas cadeiras do Parlamento ou nos sofás do Palácio de Belém.

Foi particularmente graciosa a intervenção do Presidente da República, como é seu apanágio, aliás, rejeitando inoportuno encontro com a ativista sueca para evitar inapropriado “aproveitamento político”. Foi pelos mesmos dias em que anunciava condecoração próxima a destacado treinador de futebol ou em que se juntava a campanhas de caridade natalícia numa conhecida cadeia de supermercados – sem aproveitamento político, portanto. E foi também por esses dias que elogiou o “brilhantismo” de José Hermano Saraiva, sinistro ministro da educação salazarista, como bem se lembrarão os estudantes de Coimbra dos tardios anos de 1960. Nessas escolas não se queria espaço para políticas, sabemos. Talvez por isso se louve esse alegado brilhantismo: em alguns quadrantes políticos, o que brilha é o obscurantismo. E o aproveitamento político, metódico e sistemático.

Talvez não fosse então má ocasião para repensar o desajustado modelo escolar que continuamos a impor a crianças e adolescentes, num acelerado processo de produção de altíssimas qualificações para fornecimento massivo de mercados de trabalho precários, cada vez mais mal pagos e de exigências duvidosas. Como se tem visto, faz pouco pelo ambiente o “estudo do meio”, tal como fazem pouco pela participação cívica e política, cada vez mais esvaziada, as várias formas de alegada promoção da “cidadania” que o nosso modelo escolar vai impondo. Em compensação produzem-se Mestres com 21 anos e Doutores com 25, com remotas hipóteses de serem apropriadamente integrados no universo laboral e com ainda mais escassa vontade de intervir nas instituições políticas existentes – incluindo o exercício do elementar direito ao voto.

Qual é a pressa, então, desta formação que promove habilitações em ritmo acelerado enquanto esvazia os laços comunitários? Talvez o exemplo de Greta Thunberg – que interrompeu os estudos por um ano – mostre que há mais a aprender fora das salas de aulas do que dentro e que não se perde tempo por adiar a conclusão da escolaridade – na realidade, até se ganha. A questão importante é, portanto, a contrária da que tem sido levantada pelo cinismo de ocasião com que se quer à força manter os adolescentes enclausurados numa sala fechada ao contágio da sociedade e da política: como se pode proporcionar aos restantes adolescentes a oportunidade de – tal como Greta – aprender com a experiência própria da vida comunitária os valores da participação e do envolvimento político na construção de um futuro comum? Na realidade, a greve à escola também traduz uma valorização do discurso científico que os próprios cientistas estiveram longe de alcançar.

São estes estudantes – com as suas faltas às aulas para se manifestarem nas ruas – que procuram impor na discussão política o conhecimento produzido pela ciência. E com isso se tem construído o maior movimento de jovens a que tivemos oportunidade de assistir na história da Humanidade. Há muito que aprender com o que estão a fazer e não é tempo de lhes dar lições. Muito menos de moral, que temos pouca.

Em tempos de abstencionismo cada vez mais generalizado e escassa participação em movimentos cívicos e associativos, a greve climática que Greta começou sozinha, sentando-se à porta da sua escola na Suécia, mostra como, afinal, a juventude está interessada, disponível e mobilizada para intervir na sociedade e na política. E que procura novos espaços de intervenção. E que sabe o que quer. E é por saberem o que querem que ameaçam os poderes instituídos: não é Greta, evidentemente: são os milhões que despertaram para uma nova realidade, é a urgência dos problemas que estão por resolver, são as causas que estas pessoas estão a abraçar e que sucessivas lideranças políticas abandonaram, quer por interesses económicos e geo-políticos, quer por ignorância. Talvez a política deixe rapidamente de ser o que era. Ou que o planeta não se aguente por muito mais tempo ao necessariamente medíocre conservadorismo autoritário dominante.

*artigo escrito a 5 de Dezembro

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