VozesCandidato único João Luz - 25 Nov 2019 [dropcap]O[/dropcap]ntem aconteceu mais um simulacro de democracia em Macau. Desta vez foi a eleição suplementar por sufrágio indirecto para a Assembleia Legislativa (AL). Trocado por miúdos, o teatro burocrático para atribuição do lugar vago deixado pela saída de Ho Iat Seng da AL. Muito se tem falado de democracia e do caminho para a democracia nas regiões administrativas especiais. Os dois pólos da discussão dividem-se entre o tribalismo utópico daqueles que consideram possível que um regime autocrático, uma ditadura liderada por um homem que personifica o poder e o país, permita a livre expressão política dos povos das regiões que está a integrar. Este polo tem como derradeiro reduto argumentativo o popular e sempre apetecível chavão “então e os amaricanos”. Além disso, relativizam processos democráticos no resto do mundo como emanações próximas da plutocracia, ou outro sistema político divorciado da população, na esperança que isso desculpe a acção repressiva da autocracia. O pólo pró-democrata amedronta-se e cala-se, receoso de ser arrastado para a diabolização de quem defende liberdades, direitos e garantias consagrados nas leis básicas pelo contágio dos manifestantes violentos de Hong Kong. Tenho de deixar uma coisa clara. Sou, obviamente, contra qualquer manifestação de violência, seja ela por amotinados, seja ela de Estado. Portanto, também alinho nas críticas ao imperialismo americano, mas não o troco por outro imperialismo. Desculpem, não consigo nem quero. Também não sou crente na fé partidária, ou seja, não papo grupos conspirativos que menosprezam o evidente descontentamento da população que vimos numa manifestação pacífica em que participaram quase 3 milhões de pessoas. Completamente ignorados pelo poder, já agora. E, não, a questão não é meramente social, não é apenas devido ao apocalipse imobiliário nascido do acasalamento entre magnatas locais e Pequim. Não, o descontentamento era essencialmente político, como se podia ver tão nitidamente. Mas as autocracias são sempre vesgas, nunca enxergam o povo, nem o encaram de frente. Mas voltando a esta eleição local. Esta é a vossa democracia. Refastelem-se neste pobre espectáculo, mais um sufrágio onde ninguém vota para eleger um único candidato. A votação de ontem foi a representação perfeita do caminho para a democracia que Macau diz querer prosseguir. Apenas um candidato que nem sequer tem a capacidade para não violar as leis eleitorais. Não tinha de fazer nada, apenas fazer corpo presente. Aparecer e ir para casa. Mas, não. Decidiu dar uma entrevista à porta do local do voto e partilhou o seu programa de campanha em clara violação da lei eleitoral. Também em declarações aos jornalistas, o presidente da AL, Kou Hoi In, referiu que o facto de haver um único candidato não quer dizer que não tenha havido concorrência. Tirando o óbvio absurdo da frase, Kou referia-se à forma como a selecção do candidato é a verdadeira eleição, antes do acto simbólico de ontem. É esta a democracia que querem? Ou o sufrágio de candidatos obrigatoriamente aprovados por Pequim? Uma espécie de versão das eleições iranianas, em que os “candidatos” que vão a votos são escolhidos por um restrito grupo de aiatolas e juristas especialistas na lei islâmica. Finalmente, o argumento de que há povos que não entendem a democracia, que não podem viver nesse sistema porque são demasiado estúpidos ou tribalistas também não me convence, além de tresandar a privilégio ocidental. Quem vota mal aprende para a próxima eleição porque tem de viver com a consequência da sua acção. Faz lembrar o conceito de existência do Jean-Paul Sartre, que professa que o homem está condenado a ser livre e a ser responsável pelo que faz. É um processo de crescimento, aprendizagem, evolução. É algo que carece de aperfeiçoamento e coragem por parte do poder para se colocar olhos nos olhos com quem representa. Pessoalmente, com o pouco conhecimento que tenho da história recente da política chinesa, tenho sérias dúvidas de que o livre sufrágio universal alguma vez tenha estado nos planos das divindades políticas de cima. Aliás, tenho quase a certeza, por mais que seja inscrito nas promessas políticas de longo-prazo, ou nas leis estruturais. Mesmo a nível dos líderes locais, que se blindam num olimpo de poder inacessível ao comum dos mortais, a necessidade permanente de demonstrar amor ao partido, que se confunde politicamente com o país, afasta-os cada vez mais de qualquer intenção de serem eleitos livremente pelos governados. E, pronto, assim ficamos, à espera que um milagre aconteça. Até lá, resta-nos rir deste episódio de Monty Pynthon que foi a eleição de ontem, onde ficou patente a inabilidade para ganhar uma eleição, de acordo com a lei, como diria o presidente da CAEAL, numa corrida a solo.