Brasil | Mais de 30 crianças e adolescentes mortos por dia em 2017

Em 2017 registou-se em média o homicídio diário de 32 crianças e adolescentes, dos 10 aos 19 anos, no Brasil, segundo um relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgado esta terça-feira. Além da exposição a violência fatal, a infância e adolescência do jovens brasileiros é marcada pelo abandono escolar e elevadas taxas de reprovação

 

[dropcap]N[/dropcap]a celebração do 30º aniversário da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), a Unicef lançou um relatório com os principais avanços e desafios enfrentados por crianças e jovens brasileiros, frisando que, apesar do país sul-americano ter alcançado “conquistas importantes”, ainda enfrenta vários problemas.

“É na área de protecção à criança que o país enfrenta os seus maiores desafios. Em 30 anos, o Brasil viu crescer a violência armada em diversas cidades, e hoje está diante de um quadro alarmante de homicídios. A cada dia, 32 meninas e meninos de 10 a 19 anos são assassinados no país. Em 2017, foram 11,8 mil mortes”, apontou o Fundo das Nações Unidas.

As vítimas são, na sua maioria, do sexo masculino, negros, pobres, que vivem nas periferias e em áreas metropolitanas das grandes cidades, em bairros desprovidos de serviços básicos de saúde, assistência social, educação, cultura e lazer.

Segundo uma análise de dados feita pela Unicef em 10 capitais de estado, 2,6 milhões de crianças vivem em áreas directamente afectadas pela violência com recurso a armas. “Morar num território vulnerável faz com que crianças e adolescentes estejam mais expostos à violência armada”, destaca-se no relatório.

Nos últimos 10 anos, o número de homicídios entre adolescentes brancos tem diminuído, enquanto o assassínio de negros apresenta um crescimento.

Camadas vulneráveis

Em 2017, 82,9 por cento dos 11,8 mil casos de assassínio de crianças e adolescentes com idades entre os 10 e 19 anos no Brasil foram entre “não brancos”.

“Reverter esse quadro é urgente. É preciso investir nos territórios mais vulneráveis, com políticas públicas de qualidade, voltadas a cada criança e a cada adolescente, em especial os mais excluídos. Temos que lhes oferecer um ambiente seguro em que possam desenvolver plenamente o seu potencial”, declarou Florence Bauer, representante do Unicef no Brasil.

Além da violência, o Brasil enfrenta ainda outros desafios relacionados às desigualdades. Existem ainda cerca de dois milhões crianças fora da escola, sendo que a grande maioria vem de famílias com baixos rendimentos.

No ano passado, 3,5 milhões de estudantes de escolas estaduais e municipais foram reprovados ou abandonaram as instituições de ensino.

Quanto aos dados da mortalidade infantil, apesar da redução histórica, o Brasil registou em 2015, pela primeira vez em 20 anos, um aumento, o que causou algum alerta dentro do Fundo das Nações Unidas. A cobertura de vacinas também caiu no país, trazendo de volta doenças como o sarampo, que estava erradicado.

“Uma das histórias de sucesso mais impressionantes é a redução da mortalidade infantil (até 1 ano). Somente entre os anos 1996 e 2017, o país evitou a morte de 827 mil bebés. Não obstante, no mesmo período, aumentaram em grande escala a violência armada e os homicídios, que tiraram a vida de 191 mil meninas e meninos de 10 a 19 anos”, indicou a organização.

Houve uma queda de 71 por cento da mortalidade infantil em crianças brasileiras desde a década de 90, índice bem acima da meta estipulada pela Unicef, que era de 33 por cento.

Violência na net

No que à saúde mental diz respeito, nos últimos 10 anos, o suicídio de crianças e adolescentes tem crescido no país sul-americano, passando dos 714 casos em 2007, para 1.047, em 2017. “Problemas como ‘bullying’ e ‘cyberbullying’ precisam de ser olhados com atenção”, destaca-se no relatório da Unicef.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância refere que há “uma tendência de redução do orçamento voltado aos temas da infância e adolescência no Brasil que precisa ser revertida”.
“Investir nessas etapas da vida traz resultados para toda a sociedade. Cada dólar investido na primeira infância, por exemplo, traz um retorno de sete até 10 dólares”, salientou a Unicef.

O Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (Pnevsca), que reúne iniciativas como o Disque 100, e o Plano de Acções Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual, Infanto-Juvenil no Território Brasileiro (Pair) foram considerados como acções positivas no enfrentamento à violência contra crianças e jovens, de acordo com o estudo. Mas o cenário ainda é considerado crítico.

Segundo dados do Disque 100, negligência (72,7 por cento) e violência psicológica (48,8 por cento), física (40,6 por cento) e sexual (22,4 por cento) foram os tipos de violação contra crianças e adolescentes mais frequentes.

Sem aulas

A UNICEF e o Instituto Claro apresentaram no fim de Outubro, uma análise actualizada e inédita de dados nacionais sobre abandono, reprovação e atraso escolar, baseados no Censo Escolar. O documento revela que 3,5 milhões de estudantes brasileiros de escolas públicas municipais e estaduais reprovaram ou abandonaram os estabelecimentos de ensino em 2018.

Para ajudar as escolas a dar a volta ao fracasso, as duas organizações lançaram o curso online Trajectórias de Sucesso Escolar, uma estratégia que tem por objectivo inspirar e orientar redes de ensino e escolas a desenvolver projectos e políticas curriculares, alinhadas à Base Nacional Comum, que garantam o direito de aprender a crianças que ficaram para trás na progressão escolar.

A cultura do fracasso escolar ainda é realidade no Brasil, gerando altas taxas de reprovação, distorção idade-série e abandono escolar. Apenas em 2018, escolas estaduais e municipais reprovaram mais de 2,6 milhões de estudantes.

Os dados apontam que estudantes do sexo masculino têm uma probabilidade 64 por cento maior de repetir de ano do que meninas, e a taxa de reprovação entre os meninos é 71 por cento maior que das meninas. A taxa também chega quase a dobrar nos anos finais do ensino fundamental (do 6º ao 9º ano), mas é o ensino médio que mais reprova no país.

No total, mais de 912 mil estudantes deixaram as escolas em 2018. O ensino médio é a etapa que mais perde estudantes, tendo 461.763 abandonado a escola em 2018, a maioria ainda no primeiro ano. No geral, as regiões Norte e Nordeste são as mais afectadas pelo atraso e o abandono.

Os mais fracos

Olhando para grupos específicos, observa-se que as populações negras e mestiças apresentam taxas de abandono que chegam a ser mais que o dobro da população caucasiana. Mais de 453 mil negros e mestiços que abandonaram escolas estaduais e municipais em 2018, enquanto esse número foi de pouco mais de 181 mil estudantes brancos. O número de reprovações entre negros e mestiços também é duas vezes maior que o de brancos, somando, em 2018, mais de 1,2 milhão de estudantes reprovados.

Crianças e adolescentes indígenas são os mais afectados pela distorção idade-série e abandono escolar. Enquanto a taxa de abandono para as escolas públicas municipais e estaduais é de 3 por cento, entre os estudantes indígenas a taxa é de mais de 6 por cento. Já a distorção idade-série atinge mais de 41 por cento dos indígenas matriculados. No último ano, mais de 15 mil abandonaram a escola.

O atraso escolar também afecta mais de 383 mil crianças e adolescentes com deficiência, o que corresponde a mais de 48,9 por cento das matrículas. Quase 30 mil deixaram as escolas estaduais e municipais em 2018. A taxa de reprovação dos estudantes com deficiência é de 13,8 por cento, enquanto, para o grupo sem deficiência, a taxa é de 8,7 por cento.

“Os estudantes brasileiros ainda enfrentam uma cultura de fracasso escolar, que naturaliza a reprovação, levando a quadros de distorção idade-série e ao abandono escolar. A nossa proposta, com a divulgação dos dados e o lançamento do curso online da estratégia Trajectórias de Sucesso Escolar, é contribuir para que estados e municípios desenvolvam um diagnóstico claro do problema e divulgar recomendações para auxiliá-los na busca por soluções”, afirma Ítalo Dutra, chefe de Educação do UNICEF no Brasil.

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