Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA Grande Dama do Chá Fernando Sobral - 7 Nov 2019 [dropcap]O[/dropcap]s relâmpagos sobre as águas iluminavam o horizonte. A chuva caía, persistente, e o vento soprava, cada vez com mais força. Dentro do Chevrolet Confederate, estacionado perto do Cais 16, Jin Shixin e Cândido Vilaça tentavam ver a azáfama em que se tornara a descarga das caixas que tinham chegado a Macau. Lá fora, Patapoff, como sempre muito direito, dava ordens, apesar da chuva que ensopava os corpos de todos os que não estavam abrigados. Era um trabalho duro, ainda mais porque todos tinham de estar alerta. Ninguém sabia o que poderia acontecer. Não havia sinais de Toshio Nomura ou dos seus homens. Deveriam estar à espera deles junto do armazém, ou no caminho, para fazer uma emboscada. Ou poderiam mesmo estar ali, à espera do momento ideal para atacar. Jin Shixin abriu a porta do automóvel e saiu. Dirigiu-se num passo seguro para Patapoff e, quando parou junto dele, começou a dizer algo, que Cândido não entendeu. Também ele decidiu deixar o conforto do Chevrolet e deu um par de passos no chão molhado. Jin voltou-se para para ele e começou a gritar algo. Não acabou a frase. Ouviram-se tiros e Cândido só viu Patafff atirar Jin para o chão e tirar uma pistola do bolso. Muitos dos carregadores correram e foram em busca das suas armas. Vindos das sombras muitos homens aproximaram-se a disparar. Eram, por certo, os homens de Nomura. Não tinham esperado. O ataque era agora. Viu alguns corpos a cair no chão, ceifados pelas balas. Mas outros entrincheiraram-se e os tiros aumentaram de frequência. Nesse momento um pequeno orofício do tamanho de uma moeda de pataca apareceu-lhe no ombro. Ajoelhou-se, tossiu com a dor, e caiu com a cara no chão. Ouviu gritos e mais tiros, mas tudo deixou de ser nítido. Sabia o que ia acontecer. Jin tinha muitos homens escondidos, à espera do ataque de Nomura. Agora eles iriam surgir por detrás, tapando o caminho à fuga dos japoneses e dos seus aliados. E estes ficariam cercados, entre dois fogos. Ele tinha sido o isco. E Nomura, sem ter medido bem as consequências da sua decisão, caíra no logro. Muitas memórias que atropelavam-se agora umas nas outras, mas todas sem sentido. Abriu os olhos e só viu pés a mover-se. Tentou soerguer-se, mas não conseguiu. O sangue saía do ombro e tentou estancá-lo com um lenço. Pediu auxílio, mas ninguém o ouviu. Viu um carro a estacionar perto de onde estava caído. O motorista abriu a porta e fugiu. Talvez já o tivesse feito outras vezes. Mas desta vez era diferente. Não havia para onde fugir. Ouviu mais tiros e viu o corpo do homem a cair no chão, ficando como uma sombra imóvel fustigada pela chva. O boné de motorista caiu da cabeça e foi afastado pelo vento. A seguir o silêncio impôs-se. Deixara de ouvir. Voltou a fechar os olhos. Não sabia o que se estava a passar. Viu-se no meio de um clube em Xangai, empurrado por homens e mulheres que se riam na sua cara. Todos tinham máscaras, bigodes muito grandes e lábios muito pintados. A seu lado estava uma jovem chinesa, assustada. Gritava, para não escutar os risos. Na mão tinha uma pistola. Parecia pertencer a uma geração enganada pelos seus sonhos, enganada pelas suas fantasias, enganada pelos serviços secretos de todos os que mandavam num pedaço de Xangai, enganada pelos amigos e pelos inimigos, aniquilada moral e fisicamente, sacrificada a interesses que nunca iria conhecer. Era só um peão, num jogo sem regras. Alguém dava um tiro nela e ria, por detrás da máscara. Às vezes a moral e a lei excluem-se. É isso a condição humana. Os gregos chamavam a isso tragédia. E dela não há saída. Quando entrávamos no mundo perdíamos toda a esperança. Por isso um homem livre tem de atender à verdade. Cândido não sabia se sonhava, se delirava. Voltou a abrir os olhos. A chuva continuava a cair com força e ia limpando a rua de sangue que tinha saído dos corpos caídos. Depois, voltou a perder os sentidos. Quando acordou, demorou um pouco a descobrir onde estava. Tudo à sua volta estava enovoado. Percebeu que estava deitado e procurou os cigarros. Só depois reparou que Jin estava ali. Sorriu e deslizou da cama, com cuidado. Sentiu tonturas e teve de colocar as mãos sobre o colchão. A chinesa, que estava defronte dele, agarrou-lhe nos ombros e disse: – Deixa-te estar sossegado. A ferida não é grave, mas perdeste muito sangue. – O que aconteceu? – O que se estava à espera. Os homens de Nomura emboscaram-nos no cais, julgando que atacavam de surpresa. Mas tínhamos tudo previsto. Ficaram cercados e lutaram para sobreviver. Cândido fechou os olhos e depois voltou a abri-los para ver se focava melhor a imagem. – E Nomura? – Tentou fugir. Mas não podíamos ter a mínima piedade por ele. Morreram muitos dos nossos. – Os japoneses vão enviar alguém para o substituir. Esta luta não terá fim. Jin fungou e encolheu os ombros. Os seus olhos estavam frios como gelo. Disse, num tom áspero: – Esta guerra não se restringe a Macau, Cândido. Não é só este canteiro que conta. Não está isolado do resto. Todo o jardim está em chamas. – E agora? – Agora vamos continuar a guerra. Não há tempo a perder. Nem dúvidas. Sabes, Cândido, os grandes mestres sempre nos disseram que há quem oculte a sua debilidade por detrás da máscara da fortaleza e, outros, a sua fortaleza por detrás da máscara da fraqueza. Continua a ser assim, como sempre foi. Mas sabemos que a máscara da fortaleza trunfa sobre a da debilidade. Aí radica o poder. Temos de usar a máscara da fortaleza para garantirmos a vitória. Só assim nos seguirão. Cândido olhou para Jin. Ela, no fundo, tinha de acreditar no que dizia. De outra forma, tudo se desmoronava. Não parecia crer que os opostos se uniam e que, muitas vezes, a debilidade não era mais do que a máscara de uma profunda fortaleza. Reparou que os olhos de Jin estavam agora tristes e inquietos. – Que tens mais para me dizer? – Uma coisa triste. A tempestade trouxe mais um corpo para a superfície. É o do teu amigo José Prazeres da Costa. Tal como a Amélia foi morto a tiro. – Não me estás a mentir? – Eu só minto o imprescindível. Cândido levantou-se e abraçou-a. Entre o ombro e o pescoço dela encontrou o aroma de pele que o fazia perder a noção da realidade. Encheu os pulmões e deixou-se ficar assim durante algum tempo. – Iam fugir, não é verdade? – Parece que sim. Julgaram que era possível o amor. Mas, nestes dias, também ele é uma vítima de quem tem outros desígnios. Cândido afastou-se dela e foi até à janela. As nuvens cinzentas estavam estacionadas no céu. Ia voltar a chover. Pensou que, para um crente, a fé na salvação, sem o travão da mão de Deus, pode fazer com que sacerdotes com outros intentos usem o único critério que resta para os desacordos: matar o inimigo. Era o que se estava a passar. Deixara de haver alguém que travasse a loucura que estava à solta na China. E agora, que fazer? Quando um homem tem medo e sente que não tem nada a perder pode fazer muitas coisas. Mas Cândido tinha uma fragilidade: amava. Virou-se e olhou para Jin. Depois voltou novamente a face para a janela. Chovia. Chineses corriam com embrulhos às costas, indiferentes à intempérie, mostrando que a vida continuava e era preciso sobreviver. Afinal, o que vale a pena salvar da pesada chuva que não escolhe amigos ou inimigos?