Greta Thunberg

[dropcap]A[/dropcap]ssim que vi o vídeo do discurso na Cimeira da Acção Climática em Nova Iorque, tornou-se evidente que Greta Thunberg se transformaria no vilão palpável que a “equipa” que nega a realidade científica precisava para sair do vago bicho-papão do George Soros, o aglutinador de todas as conspirações da paranóia conservadora.

A raiva e emotividade do discurso, o dedo em riste que aponta à vergonha, o tom de profundo e insolente desdém aos poderes que lideram o mundo, são os ingredientes para diabolizar a mensageira, depois de poluída a mensagem com propaganda.

O ataque do status quo aos jovens que o confrontam é coisa que vem de longe, faz parte de uma torpe tradição de velhadas que, por um lado, se queixam de falta de acção cívica da juventude, mas depressa vociferam impropérios senis quando essa juventude ousa contradizê-los.

Recordo as manifestações de estudantes a favor de controlo de armas nos Estados Unidos depois do massacre numa escola secundária de Parkland, na Florida.

Os sobreviventes do derrame de sangue lançaram uma campanha de protestos contra a apatia da classe política comprada pelo lobby do armamento. Esses alunos, apesar do trauma recente e do eco dos tiros ainda se escutar nos corredores da escola onde estudam, foram vilipendiados na comunicação social por políticos e afins. Em particular, Emma Gonzalez (é sempre mais fácil ofender uma mulher numa situação destas), uma corajosa jovem de cabelo rapado que ousou apontar o dedo às gerações mais velhas e à elite política.

Uma representante do NRA (National Riffle Associatition) chamou-lhe lésbica neonazi (Emma, apesar da descendência hispânica), a direita multiplicou-se nas conspirações habituais (nunca houve tiroteio e os sobreviventes são actores pagos por… George Soros), multiplicaram-se imagens falsificadas da jovem a rasgar a constituição norte-americana.

Um congressista que muitas vezes defendeu a supremacia branca, Steve King, acusou a jovem de ser uma fã de Fidel Castro e da ditadura cubana por usar um pin com a bandeira de Cuba. Claro que a máquina de destruição de reputações, que não tem pudor em atacar crianças e adolescentes, se está nas tintas para o facto de a família de Gonzalez ter fugido do regime de Castro. Além disso, a bandeira usada pela jovem é um símbolo para exilados anti-Castro. Mas a realidade não é chamada para as campanhas de assassinato de caracter, nem interessa à ignóbil guerrilha geracional de adultos que insultam os mais novos.

Greta Thunberg está a sofrer um ataque do mesmo género. Nos dias que correm é o alvo preferencial dos memes falsos que se transformam em “notícias”. Mas analisemos por um momento a demência política da diabolização desta corajosa jovem. Em primeiro lugar, por transmitir a ideia de urgência perante algo que a comunidade científica é unânime, é apelidada de alarmista. Esclarecimento: comunidade científica e ciência são realidades que existem no âmbito do método científico, onde teorias são comprovadas ou destruídas em experiências e estudos submetidos a revisão de pares. Ciência não é uma realidade que viva exclusivamente de vídeos de Youtube, partilhas no Whatsapp, memes virais de Facebook, nem opiniões pagas por câmaras de comércio. Essas são as armas da anti-ciência.

Segundo lugar: “é maluca, já viram bem os olhos dela?!”. Epá, tenham vergonha na cara. Estamos mesmo a querer bater no fundo em termos éticos. Greta podia fazer aquele discurso a sorrir, vestida de pantera cor-de-rosa, com imagens do Matrix a passar no fundo, que a mensagem que transmite continuaria a ser cientificamente sólida e real.

Terceiro lugar: Greta é uma pobrezinha influenciada pelo poderoso lobby da ecologia. Vamos todos rir desta ironia orwelliana de primeiro grau. Coitadinha da enfraquecida e pobre indústria petrolífera, que só consegue fazer guerras onde e sempre que lhe interessa, que tem cronicamente os governos mais poderosos do mundo no seu bolso e que é só a mais lucrativa indústria do mundo. Pobre indústria automóvel, frágil lobby do sector energético, que nada pode fazer perante o poder da eólicas, dos cientistas que se esmifram por uma bolsa, pelos activistas ambientais que, sem saberem, são os donos disto tudo.

Há muita gente que vive num mundo alternativo, onde os que mandam são escravos e os marginalizados são na realidade os invisíveis mestres. A polarização política justifica tudo.

É uma loucura dar validade ao discurso que professa a supremacia de quem defende o ambiente, face aos blocos de poder que desde sempre colocam o lucro à frente da salvaguarda do planeta.

Para uma próxima crónica prometo endereçar os ignorantes argumentos que comparam a coragem de Galileu em destronar uma teoria “científica” dominante, protegida pela violência do Vaticano, e a ciência moderna. A internet, que vende a ideia de que todos podem ser especialistas em tudo, é a mais poderosa ferramenta para a estupidificação da humanidade e a massificação da perfídia. E, por favor, tenham vergonha na cara quando ponderarem atacar pessoalmente uma criança ou adolescente que vos chama à razão.

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