Manchete PolíticaCrédito Social | Sistema de avaliação de cidadãos contrário à Lei Básica Sofia Margarida Mota, Juana Ng Cen, João Santos Filipe e Andreia Sofia Silva - 11 Jul 201911 Jul 2019 A implementação do sistema de crédito social em Macau é contra os princípios da Lei Básica, defendem advogados e juristas. A possibilidade de ter no território o mecanismo de avaliação surgiu após a divulgação, na passada sexta-feira, do plano trienal de Guangdong para a Grande Baía. O documento destaca o desenvolvimento do sistema como acção a implementar até 2020 [dropcap]O[/dropcap] alarme soou quando foi noticiada que a implementação do sistema de crédito social se poderia aplicar a Macau e Hong Kong, notícia que surgiu com a divulgação plano de acção trienal 2018/2020 de Guangdong para a Grande Baía. Apesar de ambíguo, o documento deixa entender que a aplicação é restrita à província do continente. De acordo com o artigo 75º, onde é feita referência ao sistema de crédito social, o Governo regional de Guangdong pretende “acelerar o estabelecimento do sistema de crédito social e o sistema de supervisão e controlo de mercado. Estudar e formular os regulamentos do crédito social da Província de Guangdong e explorar a implementação de incentivos de crédito e punição disciplinar para as empresas na Grande Baía”. De acordo com o plano de acção, trata-se apenas de um projecto unilateral da Província de Guangdong, em que o sistema de crédito social é implementado sem incluir as duas regiões administrativas especiais da China. No entanto, a informação deixa de ser clara no artigo 42º do parecer sobre a implementação das “Linhas Gerais do Planeamento para o Desenvolvimento da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”, divulgado também no passado dia 5. Aqui, as directrizes vão no sentido de “estudar e formular os regulamentos de crédito social provincial de Guangdong, estabelecer um mecanismo de recolha e partilha de informações de crédito totalmente plena, uma “lista vermelha e negra” e um sistema de recompensa e punição conjunta de crédito”. De seguida é mencionada a “cooperação com Hong Kong e Macau para a partilha de informações de crédito, os padrões de avaliação de crédito, o reconhecimento mútuo de produtos de crédito, reconhecimento mútuo de instituições de serviços de crédito, explorar de forma judicial a implementação de incentivos de crédito e medidas disciplinares na cooperação entre as empresas na região”. A referência deixa antever a partilha de dados que podem ser usados no sistema de punição e recompensa, também conhecido como sistema de crédito social chinês. Impossível em Macau Recorde-se que o sistema de crédito social permite às autoridades acompanharem as actividades quotidianas dos cidadãos, que vão desde o pagamento da renda e contas de casa, às compras on-line e mesmo os comportamentos diários e inter-acções sociais em espaços públicos. Para o jurista António Katchi, “as autoridades de Macau também não poderiam, nem aplicar directamente as normas do Interior da China respeitantes ao sistema de “crédito social”, dado que elas não vigoram em Macau nem criar normas semelhantes”. Tal deve-se à colisão “frontal” destas normas do continente com o princípio da continuidade no respeitante à manutenção da “maneira de viver” e com o princípio da igualdade, previsto na Lei Básica. É também a afronta “à maneira de viver” que começa por ser apontada pelo advogado Jorge Menezes. “Esta é uma das ideias essenciais da Lei Básica e do desígnio que esteve na origem histórica de uma região administrativa especial”, explica, pelo que tal sistema seria “frontalmente inconstitucional”. “Teria o potencial de virar à nossa maneira de vier de pernas para o ar, de adiantar o relógio da história 30 anos”, acrescenta. Mas os problemas não se ficam por aqui. “O direito à privacidade é outro. A inviolabilidade da dignidade humana, outro ainda”, diz apontando os exemplos de direitos fundamentais “expressamente protegidos pela Lei Básica”. Por outro lado, atenta contra o princípio da não discriminação, ao rotular a “credibilidade” dos cidadãos. “As pessoas não podem ser distinguidas pelas suas convicções ou por atributos meio arbitrários, como seria o caso”. E a lista continua para Menezes, na medida em que “o direito ao bom nome e reputação implica o direito de não escravizarem o nosso futuro ao nosso passado. Seria um uma espécie de registo criminal da normalidade quotidiana”, sublinha. Katchi acrescenta ainda que esta medida iria contra “a própria ideia de Estado de direito, que postula uma separação clara entre o Direito e as demais ordens normativas – moral, religião e ordem do trato social (regras de cortesia)”. “Consoante o seu conteúdo, as referidas normas poderiam ofender ainda diversos direitos fundamentais: liberdade pessoal, liberdade de expressão e direito à reserva da intimidade da vida privada”, remata. Vida devassada A reserva da intimidade não pode ser violada, prevê a Lei Básica, e um sistema que recolhe permanentemente dados pessoais atenta a este princípio, defende o advogado Sérgio de Almeida Correia. “Acho que esse tipo de recolha de dados não seria admissível face àquilo que nós temos na Lei Básica, porque os dados individuais e aquilo que é a reserva da intimidade dos residentes é protegida pela própria lei básica”, O sistema “credibiliza” os cidadãos com a atribuição de uma pontuação que define se são ou não de confiança. Os “maus cidadãos” podem sofrer penalizações que vão desde a interdição a serviços públicos, impedidos de entrar num avião ou mesmo de comprarem um bilhete de comboio. Já aos “bons cidadãos” são oferecidos brindes, descontos e facilidades nos transportes ou mesmo na emissão de passaporte. A este respeito, Sérgio de Almeida Correia entende que o sistema representa “uma devassa e uma recolha de elementos da vida privada de cada um, e com consequências do ponto de vista prático no seu quotidiano”, tendo como consequência a introdução de elementos de diferenciação entre cidadãos, que não têm base legal. Por outro lado, o sistema de crédito social “não está previsto em lado nenhum [aqui em Macau]” pelo que “seria uma intervenção abusiva nos direitos individuais dos residentes” e mesmo “nos direitos humanos”. Além da oposição à Lei Básica, a medida atenta contra os tratados internacionais a que o território está sujeito. “Temos também o pacto internacional de direitos civis e políticos, e dos direitos económicos, sociais e culturais que estão em vigor em Macau, e esse é um tipo de intrusão que eu acho não está previsto e que é condenado à luz dos pactos”, acrescenta o advogado. Em suma, para Sérgio de Almeida Correia, “uma intromissão desse género não teria cobertura legal e seria perfeitamente abusiva”. Perante o desagrado público com a possibilidade de implementação do sistema de crédito social em Hong Kong, o Governo de Carrie Lam foi peremptório e não hesitou em esclarecer que a medida não vai ter lugar no território vizinho. O HM tentou contactar o Executivo liderado por Chui Sain On acerca deste assunto, no entanto não recebeu qualquer resposta até ao fecho da edição. Entretanto, de acordo com o site Liberty Times Net, as regiões de Macau, Hong Kong e Taiwan, terão sido mencionadas no site oficial do sistema de crédito social chinês. No entanto, depois da polémica levantada em Hong Kong, o HM não encontrou menções às regiões administrativas especiais e a Taiwan na mesma página. Muito além de Orwell O sistema de crédito social foi lançado em 2014, na apresentação no plano quinquenal do Conselho de Estado do Governo Central com o objectivo de “estabelecer a ideia de uma cultura de sinceridade, promovendo honestidade e valores tradicionais” Este sistema vai avaliar a credibilidade, a confiança e as boas intenções dos cidadãos – através das redes sociais e dos seus comportamentos em espaços públicos que estão, no continente, sob vigilância. A partir de 2020, a adesão é obrigatória em toda a China continental. Atentado às liberdades Para o deputado Sulu Sou a ideia de implementação do sistema de crédito social chinês em Macau é inadmissível. “É um atentado a todos os direitos e liberdades fundamentais e vai totalmente contra a Lei Básica” disse ao HM. No entanto, as recentes notícias que apontam o desenvolvimento deste sistema dentro do quadro da Grande Baía são preocupantes e devem ser esclarecidas. “Não é possível admitir qualquer ligação a este sistema dentro do projecto da Grande Baía”, acrescentou. Neto Valente nega sistema de crédito social em Macau “nos tempos mais próximos” Jorge Neto Valente, presidente da Associação dos Advogados de Macau (AAM), fez ontem comentários quanto à possibilidade do sistema de crédito social, que está ainda a ser testado na China, vir a ser implementado em Macau. “Não estou a ver que isso venha a ser implementado em Macau nos tempos mais próximos. Não creio que haja algum projecto sobre isso e, aliás, nem a China tem isso implementado em todo o lado. Ainda está em experiência piloto, para ver se funciona ou não”, lembrou. O sistema em questão visa dar pontos aos cidadãos pelo seu comportamento cívico, estando previstas sanções ou limitações a quem não atingir determinados níveis impostos pelo Estado. Em Macau, devido ao facto de vigorar a Lei Básica e não a Constituição chinesa, não se coloca, para já, essa questão, disse o causídico. Questionado sobre a possibilidade de virem a ser cobradas dívidas com recurso ao sistema de crédito social, graças à partilha de dados pessoais entre entidades privadas, Neto Valente alerta para a ilegalidade dessa medida. “Ouço dizer que através das câmaras aparecem multas em casa de pessoas que deixaram o carro estacionado ou que passaram o sinal vermelho sem que tenha havido polícias. Isso não é proibido, pelo contrário. A polícia tem apanhado criminosos e suspeitos através de câmaras.” Contudo, “existir uma identidade privada a filmar pessoas sem autorização para transmitir os dados para outras entidades privadas com vista à cobrança de dívidas difíceis não me parece que seja necessária a Lei Básica, pois isso não tem permissão em nenhuma lei”, apontou. O responsável adiantou que só em casos pontuais, e autorizados pelo Gabinete de Protecção de Dados Pessoais, é possível que isso aconteça. Mesmo na área do jogo isso não é permitido, lembrou Neto Valente. “Em relação aos junkets, mas não só, não sei se no futuro não haverá uma lei que permita fazer isso. Antes de existir meios informáticos havia algumas jurisdições, como nos EUA, onde se fazia recolha de dados de jogadores que criavam problemas em casinos. Essas listas eram divulgadas pelo mundo fora para quando essas pessoas fossem detectadas em determinados casinos, e até eram feitos avisos. Isso foi proibido. De acordo com a lei dos dados pessoais que temos em vigor isso não é permitido.”