De Mozart ao gamelão balinês

[dropcap]O[/dropcap]s compositores geralmente são homens (ou mulheres) complexos, mas poucos poderiam igualar-se a Francis Poulenc a esse respeito: parte um sofisticado e mundano parisiense, e parte um genuíno e devoto católico com, como ele próprio disse, “a fé de um pastor rural”. Nascido no seio de uma família francesa abastada, Poulenc parece ter herdado esses dois lados da sua personalidade dos seus pais. O seu pai, gerente da empresa têxtil Rhône-Poulenc, era um homem de fé profunda; a sua mãe era uma líder culta da sociedade parisiense, que, como o seu filho, adorava música, arte, literatura e teatro. No final da adolescência, Poulenc emergiu como um dos Les Six, um grupo moderno de jovens compositores que torceram o nariz ao establishment clássico e foram beber aos estilos populares. Assimilando músicos tão diversos quanto Bach, Mozart, Chabrier, Stravinsky e Maurice Chevalier num estilo unicamente seu, Poulenc descreveu-se, com razão, como “descontroladamente eclético”.

Em 1932, quando criou o seu vivo e despreocupado Concerto para Dois Pianos em Ré menor, FP 61, Poulenc era o compositor predilecto da nobreza francesa rica que frequentava os salões artísticos mais elegantes de Paris. Um dos seus membros principais era a Princesa Edmond de Polignac, nascida Winnaretta Singer, herdeira da fortuna das máquinas de costura americanas Singer. Ao longo da sua carreira filantrópica, a Princesa protegeu muitos dos principais compositores europeus, incluindo Stravinsky e Ravel, que lhe dedicaram obras importantes, como Renard e a Pavane pour une infante défunte, entre outras. A sua sala de visitas em Paris era um local de convívio da avant-garde musical. Encomendado por ela e escrito muito rapidamente no Verão de 1932, o Duplo Concerto foi projectado para ser um trabalho de puro entretenimento, para ser tocado por dois pianistas que eram amigos íntimos: o próprio Poulenc e o virtuoso do piano Jacques Février. A primeira apresentação do Concerto foi dada no dia 5 de Setembro de 1932, na Sociedade Internacional de Música Contemporânea em Veneza com a Orquestra La Scala, sob a direcção de Désiré Defauw. Poulenc ficou satisfeito com a recepção da obra e mais tarde executou-a com Benjamin Britten em Inglaterra, em 1945, sendo a mesma frequentemente descrita como o clímax do período inicial do compositor.

Com dois acordes bombásticos, o primeiro andamento, Allegro ma non troppo, explode numa série de melodias excêntricas ligadas por um motivo rítmico dissimuladamente conspiratório de quatro notas. Essa loucura transforma-se subitamente numa secção intermédia muito mais calma num ritmo lento e em êxtase; aqui os dois pianos dominam com melodias despreocupadas e ligeiramente exóticas sobre uma orquestração delicada. Depois de um regresso à música excêntrica surge uma pausa abrupta. A seguir, com os seus dois pianos, Poulenc evoca os sons mágicos e similares a sinos do gamelão balinês, em figurações modalmente inflectidas, como se lembrava de tê-los ouvido na Exposição Colonial de Paris de 1931, um perpetuum mobile recorrente no concerto. Adicionalmente, a instrumentação da obra e os efeitos de “jazz” são reminiscentes do Concerto em Sol Maior de Ravel, estreado em Paris em Janeiro de 1932.

O compositor admitiu que escolheu para tema de abertura do andamento lento, Larghetto, um tema mozartiano, por ter uma veneração pela linha melódica e por preferir Mozart a todos os outros compositores. Embora o andamento se inicie alla Mozart, depressa muda de direcção, com a entrada do segundo piano, exibindo inflexões cromáticas estranhas que nunca teriam sido ouvidas no séc. XVIII. Este cromatismo escorregadio transporta gradualmente a música para o mundo de Poulenc, e a secção intermédia torna-se sonhadoramente romântica ao estilo de Rachmaninoff.

O finale (Allegro molto) é o mais bizarro e diverso andamento de todos. Música brilhante para os dois pianos desemboca numa sucessão de melodias cómicas precipitadamente orquestradas. Mas também há passagens de lirismo encantador e romântico. Perto do final, a música de gamelão regressa novamente, agora mais brilhante e menos misteriosa. No entanto, as últimas notas do Concerto confirmam que este maravilhoso jogo musical não deve ser levado de todo a sério.

 

Sugestão de audição da obra:

Francis Poulenc: Concerto for Two Pianos and Orchestra, FP 61
Jean-Bernard Pommier and Anne Queffélec, pianos
City of London Sinfonia, Richard Hickox – Virgin Classics, 2008

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