Portugueses cada vez mais irrelevantes na política local, aponta Neto Valente

A crescente irrelevância dos portugueses na vida política local, a ameaça à independência de poderes no território e a diluição da identidade local dentro do projecto da Grande Baía são algumas das ideias deixadas por Jorge Neto Valente em entrevista à agência LUSA. O presidente da AAM lamenta ainda o número cada vez maior de advogados que vêm do continente para Macau, não para aplicar o direito local, mas para ganhar dinheiro

 
[dropcap]O[/dropcap]s portugueses são cada vez mais irrelevantes na política local e a comunidade chinesa já ocupou quase todos os cargos de poder, disse o presidente da Associação de Advogados de Macau (AAM), Jorge Neto Valente, em entrevista à agência Lusa.

Vinte anos após a transição de Macau para a administração da China, “há uma erosão muito grande em relação aos portugueses participarem na política local”, afirmou Neto Valente, referindo-se àqueles nascidos em Portugal.

“Hoje em dia, os portugueses (…) são praticamente irrelevantes na política local”, até porque, justificou, “não estão integrados na política local”.

Nos últimos 20 anos, “os chineses tomaram praticamente conta de tudo o que é lugar político… e os portugueses têm funções de assessoria, têm negócios (…), mas em relação à política são cada vez mais irrelevantes”, reforçou.

Neto Valente dá o seu caso como exemplo: “penso que sou o único membro do colégio eleitoral que nasceu em Portugal”, afirmou, referindo-se à comissão eleitoral que vai eleger o próximo chefe do Governo, numa votação agendada para 25 de Agosto.

O paradigma democrático a partir do qual deve ser visto Macau é, para o presidente da AAM, sobretudo uma questão pragmática: “É a China que nomeia e não vai prescindir disso. Não há outro esquema previsto na Lei Básica”.

“Temos de viver com isso e não vale a pena, por mais barulho que haja, por mais gente contra este sistema e a exigir um maior esforço democrático na escolha do Chefe do Executivo, este esquema vai manter-se na Lei Básica”, defendeu.

O advogado, em Macau há 49 anos e que preside à associação desde 2002, depois de ter ocupado o cargo entre 1995 e 2000, reforçou a ideia de que “não há dúvida nenhuma que, no sistema que é definido pela lei básica, as possibilidades de escolha não são muitas”.

Por isso, sublinhou, “quando alguém lembra à China que isto não é democrático, porque não é uma votação universal, a China diz – e diz baixinho porque nem está para se preocupar com isso -, que no tempo da administração portuguesa nem isto havia. Porque o governador era nomeado (…) pelo Estado e sem haver eleições”.

Independência ameaçada

Jorge Neto Valente, avançou ainda, que algumas das novas leis recentemente aprovadas “são machadadas” na separação e independência de poderes no território.

“Uma das maiores machadadas no segundo sistema e no sistema jurídico de Macau foi a aprovação recente da lei que diz que para julgar crimes contra a segurança do Estado só poderão intervir juízes chineses”, precisou.

Em causa está a alteração efectuada à Lei de Bases da Organização Judiciária, que limita apenas a magistrados e juízes com cidadania chinesa a investigação e os julgamentos de casos relacionados com a Segurança Nacional.

“Os juízes não se podem distinguir entre patrióticos e outros”, defendeu o presidente da AAM.
“Qualquer juiz tem de ler a lei e aplicá-la. Não pode haver juízes que são determinados pelo seu fervor patriótico”, acrescentou o responsável.

Esta alteração legislativa “foi terrível”. “Objectivamente é um péssimo sinal que se deu para os residentes e para fora de Macau”, opinou Neto Valente, sublinhando que “o que se tem assistido é a uma certa erosão da maneira de viver” no território e que “a aprovação de alguma legislação (…) é preocupante em termos de subsistência do segundo sistema”.

Riscos à boleia

Por outro lado, trazer advogados da China à ‘boleia’ do projecto de cooperação regional da Grande Baía é um risco para a advocacia portuguesa e para o sistema jurídico do território, sublinhou Neto Valente.

Em causa estão, destacou, a escala de Macau e os interesses antagónicos das partes envolvidas face ao projecto de Pequim que prevê a criação de uma metrópole mundial que envolve as regiões administrativas especiais chinesas de Hong Kong e Macau e nove cidades da província de Guangdong. A Grande Baía tem um Produto Interno Bruto que ronda os 1,3 mil milhões de dólares, maior que o PIB da Austrália, Indonésia e México, países que integram o G20.

“Há advogados que defendem a integração na Grande Baía porque estão convencidos de que vão ter mais oportunidades de negócio”, afirmou. “Querem trazer para Macau os advogados da China. (…) Trazer estes advogados significa acabar com a advocacia de língua materna portuguesa e significa mais do que isso, esses advogados que vêm do interior da China não vêm para cá entusiasmados com o direito de Macau, eles vêm entusiasmados com o direito da China”, sublinhou, lembrando que só em Guangdong há 100 mil e em Hong Kong mil, contra pouco mais de 400 em Macau.

“Alguns [advogados], sobretudo os mais medíocres, têm uma perspectiva de ganhar mais dinheiro, ao serviço de advogados da China, e com negócios da China”, explicou.
Tal “significa que não é só a advocacia que está em perigo, mas o sistema jurídico de Macau”, alertou o advogado.

Identidade em risco

“Há um risco de diluição da identidade” de Macau, “tão pequenina” em relação à população de mais de 70 milhões que vivem na região da Grande Baía, ressalvou.

A mais-valia para Macau “depende do que o Governo central resolver fazer (…). Se não for o Governo central a querer manter Macau com identidade própria Macau desaparece, diluiu-se rapidamente”, opinou.

“Dos cerca de 430 advogados que há hoje, sei quem é capaz de prosseguir uma linha que acho que deve ser seguida, com independência, (…) com sabedoria para não criar divisões inultrapassáveis e para não criar blocos que se dividam e prejudiquem a classe”, explicou.

Neto Valente sublinhou o crescimento da associação desde 1999, quando existiam cerca de uma centena de advogados: “Agora são 427, (…) Um salto grande. No fim dos anos 1990 havia cinco ou seis estagiários, agora há 127. A curto prazo, vai haver mais de 600 advogados. É um instante”, prevê.

Mobilização reduzida

Abordado sobre a possibilidade de existir em Macau uma mobilização social como a que se assistiu recentemente em Hong Kong contra a lei da extradição, Neto Valente descarta a possibilidade.

“Acho que em Macau não é possível mobilizar as pessoas, nem pagando, até porque não vai haver ninguém a pagar para fazer barulho”, ironizou Neto Valente, depois de recordar palavras de um “fanático defensor do Partido [Comunista] que toda a gente foi paga com duas mil patacas, por cabeça, para se apresentar na manifestação” que juntou milhões de pessoas nas ruas de Hong Kong.

“Isso é um insulto a dois milhões de pessoas, quase um terço da população de Hong Kong” que saiu à rua, sustentou.

As emendas à lei da extradição que causaram tanta polémica em Hong Kong podem ser vistas de duas formas: uma “mais simpática” e outra “mais perversa”, disse.

“A forma simpática de ver isto é: entre o virem buscar pessoas em Hong Kong por baixo da mesa, à socapa, e levá-las para a China, e haver regras estabelecidas claramente a definir em que condições são entregues à China, eu, talvez por deformação profissional, prefiro que haja regras”, defendeu.

“Mas tem o lado perverso: (…) com essas regras e com a amplitude com que as autoridades chinesas apreciam qualquer crítica como sendo contra o Estado, como sendo um ataque ao partido (…) também pode acontecer que a China diga que pretende a entrega de determinadas pessoas para serem acusadas de crimes que são crimes de opinião, que não são crimes perante a lei de Hong Kong ou de Macau”, explicou.

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