A grande dama do chá

 

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[dropcap]A[/dropcap] noite tem o poder de silenciar todas as certezas. De dia julga- -se que há remédios para as doenças do mundo e da alma. A noite desmente isso. Nada é certo. A noite permite acordar dos sonhos frágeis. Era isso que sentia Cândido Vilaça, apenas iluminado pela forte luz da lua cheia. Fora isso que o trouxera até às ruínas de S. Paulo. Trazia o seu saxofone e sentou-se nos degraus da enorme escadaria. Levou-o aos lábios e do instrumento saiu um som que parecia lamentar todos os males do universo. Era um gemido arrastado, que nada tinha a ver com o que tocava nos fins-de-tarde dançantes do hotel Riviera. Era algo muito íntimo, vindo das suas entranhas. Doía. Quando se cansou de tocar procurou um declive onde a luz da lua não o atingia e ficou ali, entre as sombras, respirando o ar da noite de Macau. Passados minutos ouviu, não muito longe dele, vozes que falavam em português. Olhou para os dois homens que subiam as escadas defronte das ruínas. Um dos homens tinha um sotaque brasileiro, mas era de outra nacionalidade. O outro tinha uma voz que ele reconhecia, mas não sabia de onde. Falavam de pessoas da sociedade macaense e de acontecimentos futuros, mas Cândido não percebeu o sentido da conversa.

De repente, da penumbra, surgiram quatro vultos, que se aproximaram rapidamente. Os dois homens não se moveram. Pareciam esperar o ataque ou, então, estavam seguros da sua situação. Assim era porque perto deles apareceram meia dúzia de sombras que avançaram para o grupo que surgira primeiro. Depois de uma rápida escaramuça, Cândido percebeu que o primeiro grupo, em inferioridade, debandava. Escondido, não se mexeu, até que, para perto de si, resvalou um corpo que se agachou na sombra e se deixou ficar, sem se mover. De onde estava, pro- tegido pela escuridão, Cândido podia ver a zona da escadaria onde se encontravam os vencedores do breve conflito. Ali continuavam os dois homens que tinham estado a conversar, agora cercados por uma meia dúzia de outros que olhavam em todas as direcções. Um deles disse:

– Fugiram, os cobardes!

O homem de sotaque brasileiro retorquiu:

– Não vale a pena segui-los. Sabemos quem são. Iremos apanhá-los quando quisermos.

Ainda estiveram ali mais alguns minutos. Mas, depois, caminharam em fila até à rua poeirenta que dava para as ruínas. E Cândido deixou de os ver ou de os ouvir. Só depois de ter a certeza de que já não estavam por perto, voltou-se para o corpo, vestido com uma cabaia negra, que estava a seu lado. Quando o tocou, sentiu o braço molhado. Era sangue. Os seus olhos repousaram então na face tapada por um pano negro, onde só se viam os olhos. Não deixou de sorrir, ao reconhecê-la, depois de lhe retirar o pano que tinha a esconder-lhe o rosto e o cabelo:

– Hoje os fantasmas têm nomes e rostos. Ela não respondeu e levou a mão ao braço. Tinha sido ferida pela faca de um dos assaltantes. Para estancar o sangue enrolou à volta da ferida o pano que usara para esconder a cara e deu-lhe um nó.

– Temos de tratar disso, menina Jin Shixin. O olha dela era de raiva. Cândido acendeu um cigarro, para se acalmar.

E, depois, disse-lhe:

– Temos de tratar dessa ferida. Podemos ir até à minha casa. Não é longe.

Assim fizeram. Caminharam devagar até à pequena casa de Cândido. Jin encostou o corpo ao dele e o português sentiu o seu calor. Agradou-lhe. Quando chegaram, ele acendeu uma lanterna e ela sentou-se numa cadeira e estendeu o braço. A ferida não era muito profunda e já deixara de sangrar. Cândido colocou um pouco de vodka na ferida, o que fez Jin gritar e pôs, à sua volta, uma gaze de algodão.

– Agora precisas de descansar. E de ter mais cuidado.

O olhar de Jin era frio. Não disse nada. – Quem são os teus inimigos, menina Jin? Ela olhou, desafiadora, para ele:

– Quem achas que são? Os japoneses.
– Que japoneses?
– O homem que estava no hotel Riviera quando vieste falar comigo. E os seus lacaios portugueses.
– Porque é que falas de lacaios?

Jin deu uma gargalhada, o que lhe serviu para esquecer a dor:

– Todos são lacaios do dinheiro. As pessoas fazem tudo por ele. Sejam japoneses, portugueses ou chineses.

Cândido sorriu. Sacudiu um insecto imaginário da roupa, só para mexer a mão. Depois disse:

– Sabes, Jin, a água contorna todos os obs- táculos. A partir dela podes tentar perceber os portugueses. Serviram-se da água para sair de Portugal e procurar outros horizontes. E aplicam esse princípio à vida. Estão sempre a contornar os obstáculos, em vez de os enfrentarem. Somos assim.

Ela percebeu o que ele estava a pensar. Reparou finalmente no aspecto dele. Cândido Vilaça era alto e tinha um corpo seco. Os olhos castanhos e o cabelo escuro combinavam com a tez morena da pele. Os olhos pareciam afectuosos, mas escondiam uma fúria sempre latente. Ha- via algo de sedutor no português. Disse, condescendente:

– Os portugueses podem ser como a água. E serem sobreviventes de muitos naufrágios. Mas há uma guerra que já não está às portas de Macau. Está cá dentro. Hoje assististe a isso. Podes dizer que não tem nada a ver contigo? Houve um filósofo chinês que disse que: “Quando conheceres quem és, conhecerás o céu”. Sabes o que é a guerra?

Cândido suspirou. Recordou uma história que um macaense, que vivera da pirataria, lhe contara: “os imperadores chineses sempre sonharam subjugar as águas. Nós, os piratas sempre desejámos controlar aqueles que se aventuraram acima das águas. Deixamos o céu para os pássaros. E as águas profundas para os peixes. Cada um deve ocupar o seu lugar”. Ele era músico. Nada sabia de guerras. Cândido virou-se para Jin:

– Portugal foi uma grande potência por- que controlou as veias do mundo, os oceanos. Quando outros o fizeram a sua missão terminou. Em Portugal considera- mos a eternidade e o destino com o mar. É o fim depois do fim.

Bateram à porta. Cândido olhou para Jin, mas esta pareceu estar calma. Agarrou numa faca que tinha escondida na roupa, levantou-se e foi-se colocar ao lado da porta. Depois fez sinal para Cândido per- guntar quem era. Ele assim fez. Do outro lado escutou um sussurro:

– Potapoff.
– Quem?

Jin fez-lhe sinal para ele abrir a porta e o português assim fez. Viu uma face dura com olhos frios e negros. Potapoff deu um passo em frente e Cândido teve de se afastar. Jin apareceu e olhou para o russo. – Estou bem. O português tratou de mim. – Ainda bem. Vamos?

Jin seguiu-o em silêncio. Cândido fi- cou a vê-los caminhar na rua escura. Ela não olhou para trás.

 

[CONTINUAÇÃO]

 

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