Editorial VozesLisboa não tem moral para dar lições a Pequim sobre Macau Carlos Morais José - 6 Mai 20197 Mai 2019 [dropcap]P[/dropcap]or ocasião da visita do presidente Marcelo, entendem alguns que Lisboa não faz o suficiente para deter o que vêem como um erodir dos valores democráticos em Macau, tal como foram proclamados na Declaração Conjunta e plasmados na Lei Básica. Por exemplo, Marco Carvalho escreve no seu blogue: “Para Lisboa, o facto da ideia de democratização só pontificar, em Macau, nos dicionários é uma circunstância que nem aquece, nem arrefece. O Chefe do Executivo é eleito por 400 predestinados? A Assembleia Legislativa está nas mãos de acólitos nomeados pelo Governo ou eleitos por via indirecta? Os trabalhadores não são livres para se constituir em sindicatos e o direito à greve não está legislado? E então?”, dando a entender que perante estes aspectos descritos deveriam o Presidente da República e o Governo português tomar uma dura posição. Ora parece-me existir aqui um pensamento apressado, órfão da história, bem intencionado no seu âmago, é certo, mas ainda assim atascado em preconceitos que ignoram de onde vimos e como chegámos aqui. Ou seja, por outras palavras, que cidade, que sistema político, que economia, que práticas administrativas e correntes, receberam os actuais donos da RAEM há 20 anos? Primeiro, a questão da eleição do Chefe do Executivo. Como se sabe, o Governador português era nomeado pelo Presidente da República, escolhia discricionariamente os seus Secretários e caía aqui de pára-quedas. Ponto. A tal comissão de “400 predestinados” é, ainda assim, um passo positivo no sentido da representividade democrática e se não estamos este ano a votar para eleger um novo Chefe, entre candidatos não rejeitados por Pequim, tal deve-se à praga amarela que infestou Hong Kong e impediu a ex-colónia britânica de dar mais um passo no sentido do sufrágio universal. Um passo muito mais importante do que nos tentam impingir os vendedores de democracia enlatada e de consequências imprevisíveis, pois os cenários daí resultantes repousariam na imponderabilidade do acto eleitoral. Por contágio, por medo, sem uma razão da mesma ordem, Macau viu igualmente o caminho para o sufrágio universal suspenso. Na mesma várzea, seria igualmente importante reflectir se o sufrágio universal tem aplicabilidade numa região especial como Macau, cuja economia depende quase exclusivamente do Jogo, cujos lucros atingem valores astronómicos e cuja população apresenta uma maturidade cívica e política que a prática eleitoral tem demonstrado assustadora. Poderá esta cidade ser deixada entregue a si própria quando, enquanto porto franco de vários comércios e espaço de Jogo, está aberta e sujeita à erupção de fenómenos que fundem política e crime? Não assistimos já a tentativas no passado, com ramificações podadas no presente? Fica o repto. Quanto à Assembleia Legislativa, assistimos neste vinte anos a um alargar tímido da representividade democrática. Sem pôr em questão o sistema, o peso dos deputados eleitos directamente cresceu, o que em muito pouco alterou ao hemiciclo o papel de “carimbo” das políticas e das propostas de lei do Governo. Como sempre o fora. É preciso compreender que “segundo sistema” foi o nome dado às práticas políticas, cívicas, económicas e sociais que vigoravam em Macau e Hong Kong antes das transferências de soberania e estas não eram propriamente um hino à democracia, em termos de representatividade, nem os Governos agiam de forma transparente e democrática. Havia, com certeza, nas duas últimas décadas de presença europeia, liberdade de expressão, de reunião, de imprensa, etc., mas o povo não escolhia os seus representantes, não piava quanto às políticas implementadas e o seu voto só preenchia uma parte menor dos respectivos hemiciclos. A Assembleia Legislativa sempre esteve “nas mãos de acólitos nomeados pelo Governo ou eleitos por via indirecta” (isto é o segundo sistema!), embora nestes 20 anos se tenha relativamente “democratizado”, sem que isso tenha beliscado os interesses instalados. Portanto, estamos a falar de quê? Queriam que Lisboa exigisse a Pequim o que nunca exigiu a si mesma? Ou esquecemos que o nosso segundo sistema era uma quase ditadura militar, infestada por corruptos e especialista no abuso de poder contra os que não alinhavam e não eram “bons portugueses”? A quantos despedimentos do estilo Cardinal-Taipa ou pior, em que se perseguia toda a família, não assistimos nos anos 90? Ou seja, por que razão estranha e descabida Macau — a cidade-casino, frequentada por tríades e empresários de reputação duvidosa, cuja população, na sua maioria chegada há uma geração, nem identidade local tem e vota nos seus conterrâneos — se tornaria numa democracia plena, em roda livre governada pelas suas gentes, nas costas de Pequim? Era esta gente que ia gerir à tripa-forra o patacame do Jogo? Havia de ser lindo… Mantenham-se os direitos políticos e civis garantidos pela Lei Básica, aprofunde-se a participação cívica e que venha o sufrágio universal, restrito a candidatos não rejeitados por Pequim. Outros caminhos conduzem à catástrofe. E, nem que seja por pudor, já que realismo parece não funcionar, inibam-se os que entendem estar Portugal em posição de dar lições à China sobre Macau. Não está. Se a língua portuguesa aqui ainda é falada e tem estatuto, isso deve-se a Pequim e não a Lisboa. Entre muitos outros aspectos que negar roça, no mínimo, a ingratidão…