VozesPeixe de Cristal João Luz - 29 Abr 201929 Abr 2019 [dropcap]A[/dropcap]pesar do título, hoje não vou escrevo sobre sushi, terrinas em forma de pargo, ou peixes que se cansaram de ser dourados e optaram pela transparência, mas sobre uma das mais brilhantes demonstrações de ironia que Macau já viu nas últimas semanas. Sublinho semanas com alguma generosidade, pois a ironia por cá é servida em copos largos, a transbordar. Este sábado todo o aparato da Protecção Civil, que não perde uma oportunidade para mostrar serviço desde o fiasco do Hato, marcou um encontro com a prontidão, a eficiência e a inadvertida paródia. Muitos brinquedos foram comprados, desde que vimos bombeiros a tentar cortar árvores com pequenas serras manuais. Hoje em dia, a Protecção Civil tem veículos anfíbios e mil e um apetrechos para responder à inevitável e indiferente crueldade da natureza. Já a parte evitável e preventiva não tem lugar na realidade, nomeadamente a construção de muros, ou quaisquer tipos de barreiras físicas, que impeçam a subida das águas nas zonas baixas da cidade. Para tal se tornar realidade vão ser precisos um número sem fim de estudos, avanços e recuos conceptuais e filosóficos e mais uns anitos do Porto Interior transformado numa Atlântida sazonal. O propósito do simulacro Peixe de Cristal era “rever e optimizar a operabilidade dos planos de emergência, reforçar a capacidade de prevenção e resposta a emergência dos membros da estrutura de Protecção Civil, bem como familiarizar o público com o “Plano de Evacuação das Zonas Baixas em Situação de ‘Storm Surge’ durante a Passagem de Tufão”. Estava tudo a postos para o exercício de resposta ao mau tempo. Porém, o simulacro foi cancelado devido ao mau tempo. Uma impertinente trovoada deu origem a um sinal preto de “Storm Surge”, que levou ao cancelamento do simulacro e da credibilidade. Ou seja, um exercício para testar a prontidão das autoridades para tempestades foi cancelado devido a uma tempestade. Se isto não é ironia da mais fina, acho que podemos esquecer o conceito e apagá-lo dos dicionários. Como um exercício de matemática cancelado devido à presença de números. Não só se desperdiçou uma oportunidade de luxo para responder com profissionalismo e rapidez a algo que já estava anunciado e, de facto, a acontecer, como o cancelamento deixa na mente dos cidadãos a desconfiança quanto à eficácia de resposta. Como tal, foi com um sorriso ainda de incredulidade que fui recebendo as mensagens do Governo que cada vez mais se pareciam com um sketch de comédia. Há momentos em que imagino os Monty Python a ocupar cargos de relevo no Conselho Executivo no mais surreal episódio do circo voador. Imagino John Cleese e Eric Idle a orquestrar um simulacro de defesa da cidade contra o ataque de um gigantesco carapau voador recorrendo a mangueiradas de molho à espanhola. A montar no Porto Interior uma barricada de salada de alface, tomate e pimento assado e a enviar reforços de escabeche contra a subida do nível do branco fresco traçadinho com gasosa que ameaça galgar todos os obstáculos físicos. Uma das mensagens mais hilariantes da Protecção Civil foi o cancelamento das actividades do Peixe de Cristal no exterior, “devido ao aviso de trovoadas”. As autoridades decidiram que era melhor simular resposta a “storm surge” e tufões no aconchego seco e confortável que só quatro paredes e um tecto providenciam. Finda a chuvada, o exercício de simulação de resposta a chuvadas prosseguiu culminando num estrondoso sucesso. Ninguém se molhou, nenhum par de meias teve de ser seco e nos centros de abrigo foram distribuídos lanches e garrafas de água. Foram também distribuídos panfletos a comerciantes e moradores das zonas baixas de Macau para os informar como lidar com algo que estão fartos de saber e para testar os níveis da sua pachorra. De um modo geral, foi uma tarde bem passada, foram tiradas muitas fotografias giras de circunstância, a harmonia e simbiose entre autoridades e população atingiu os níveis desejados de fraternidade e ninguém se magoou, o que acaba sempre por ser o mais importante. Só foi pena a chuva.