Corrupção com rédea solta

[dropcap]R[/dropcap]ecentemente, o Comissariado contra a Corrupção (CCAC) publicou o “Relatório de Actividades de 2018 do Comissariado contra a Corrupção de Macau”, cujos conteúdos não deixaram de surpreender os habitantes da cidade. Aparentemente, depois do caso de Ao Man Long e de Ho Chio Meng, existem ainda muitos funcionários do Governo que continuam a transgredir a lei. Pergunto-me quanto tempo será ainda necessário para que o Executivo da RAEM se liberte definitivamente deste problema.

A corrupção existe devido a práticas inquinadas dos sistemas político e económico, bem como a procedimentos perversos, culturalmente enraizados. Alguns empresários afirmam que “pagar luvas” é a melhor forma de tornar eficientes os serviços administrativos, como se pode verificar em certos países e regiões. Em Macau, no tempo da administração portuguesa, e na fase inicial da abertura da China ao processo de reformas, as pessoas consideravam o dinheiro aplicado em “presentes” como um custo normal de produção. Mas, com o passar do tempo e com as inevitáveis mudanças que acarreta, esta pseudo forma de aumentar a eficiência da administração pública deixou de ser tolerável.

No relatório do CCAC, são referidas as declarações da secretária para a Administração e Justiça sobre o ingresso de familiares de funcionários administrativos nos quadros públicos. A secretária afirma que esse ingresso não viola a lei e que, como tal, não pode ser considerado crime, mas desaconselha o procedimento considerando-o impróprio. Familiares de funcionários do Governo estão colocados em diversos departamentos públicos, como é o caso do Centro de Produtividade e Transferência de Tecnologia de Macau e de muitos outros serviços. Se a corrupção e as más práticas não forem erradicadas de vez de todas as instituições, os subordinados continuarão a seguir o exemplo dos seus superiores. A corrupção continua a medrar neste viveiro, e mesmo depois do novo Chefe do Executivo tomar posse, não nos conseguiremos livrar destas práticas malsãs.

Uma das causas primordiais da corrupção reside no abuso do poder, especialmente quando falta supervisão de procedimentos. Aliás, o sistema de verificação e de avaliação de desempenhos, ao nível da actuação do Governo local, tem sido uma preocupação de longa data da China, especialmente quando estão envolvidos muitos interesses e muitos accionistas. É muito difícil conseguir um aperfeiçoamento do sistema, quando faltam pessoas com ideais e quando o sistema jurídico não é suficientemente sólido. As leis são uma das principais ferramentas para governar um país, e a implementação de uma boa aplicação da lei é uma salvaguarda do progresso social.

Embora Macau já tenha regressado ao seio da China mãe há duas décadas, o seu atraso na legislação dura desde essa altura. O primarismo dos legisladores e o fraco exercício do estado de direito fizeram com que Macau ficasse entregue ao “estado das coisas”. Se a Polícia conseguisse utilizar o reconhecimento facial para identificar os peões que não respeitam os semáforos, de forma a poder multá-los, aposto que a fila para pagar as multas ia ser tão longa que ia dar a volta a metade da Península de Macau.

O princípio do estado de direito é a implementação da justiça, da imparcialidade, da transparência e da igualdade de todos os cidadãos aos olhos da lei. Todas as organizações e todos os indivíduos devem respeitar a autoridade da lei e agir dentro dos limites por ela definidos. Não podem existir privilégios nem excepções perante a lei. Olhando para o que se tem passado em Macau nos últimos anos, quem poderá afirmar que a nossa sociedade se rege pela obediência à lei?

O relatório do CCAC traça um quadro geral do problema da corrupção ao nível dos serviços administrativos. O caso “da permuta de terrenos da Fábrica de Panchões Iec Long” e o “projecto de construção do Alto de Coloane” ainda estão para ser avaliados nos próximos dias. Já saber se a atribuição das concessões para exploração de jogos de fortuna ou azar em casinos através de concurso público, se irá realizar de forma justa, imparcial e transparente, só o tempo o poderá dizer. Esta questão será sem dúvida um dos grandes desafios do Governo da RAEM.

Para tornar límpidas as águas do Rio Amarelo, não vale a pena aplicar grandes esforços para filtrar as areias e a lama ao longo das margens, devemos sim concentrarmo-nos na consolidação dos aterros, de forma a evitar que as areias e a lama continuem a ser levadas rio adentro. O relatório do CCAC “mexeu com as águas turvas”, mas ainda é cedo para saber o que vai acontecer aos que foram identificados no relatório.

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