h | Artes, Letras e IdeiasOs bugs da maré ansiosa Luís Carmelo - 11 Abr 20196 Mar 2020 [dropcap]E[/dropcap]m meados dos anos sessenta do século XX, uma menina de mini-saia contida e de cabelos em ninho de cegonha anunciava, no branco e preto da TV, enceradoras, frigoríficos de cromado brilhante e móveis de mogno capazes de albergar uma telefonia e um gira-discos. Tudo isto atrás da montra que reflectia as muitas cores dos reclames luminosos que infelizmente desapareceram das nossas cidades em nome das higienes e das composturas contemporâneas (lembro-me de anúncios famosos que se moviam ao jeito de pirilampos gigantes: o Brandy Constantino, a Oliva, o Fósforo Ferrero, o Ovomaltine, o Ómega e sobretudo a capa e espada do bravo Porto Sandeman). Essa menina congeminava desejos reprimidos e projectava uma espécie de direito natural à preguiça insossa e insonsa (e o que irradiasse do sexo não passava de nenúfares e de trinados da eurovisão). Todos esses electrodomésticos de luxo se cruzaram, ao longo de décadas, com revoluções de brado e com outras (paradoxalmente) pacíficas. O tempo passou e alguns desses electrodomésticos desapareceram ou abandonaram o epíteto do luxo e massificaram-se. Hoje em dia, já pouca gente sabe o que é uma telefonia, um transistor, uma enceraroda, a cabeça de um gira-discos, a fita acastanhada do gravador e muito menos quem foi o homem de capa e espada do Porto Sandeman (que se erguia das majestosas armações de metal que, de noite, sobre os telhados das cidades, contavam histórias de luz ao desalento sigiloso de que Ruy Belo tão bem deu conta nos seus poemas). A democratização dos utilitários tecnológicos com funcionalidades e formatos novos (todo o caudal digital de aparelhamentos do dia-a-dia) tornou-se no dado mais óbvio da nossa vida. A menina de mini-saia contida e com cabelos em ninho de cegonha dos sixties respira hoje dentro de nós, como se a instantaneidade da tecnologia se confundisse, cada vez mais, com um pasmo liofilizado feito da magia ‘on’-‘off’. Os antigos reclames luminosos caíram para dentro do espectáculo individual dos telemóveis e o desalento foi rebaptizado a pensar em novas patologias de tipo compulsivo. Comparar épocas tão distintas – e afinal separadas por apenas meio século – é um ofício parecido com o do carpinteiro José a tentar explicar aos vizinhos por que razão não era o pai de Jesus. Seja como for, a actual revolução tecnológica também teve já os seus lances proféticos falhados (ou, se se preferir, os seus telhados esvaziados de ilusões luminosas). Há duas décadas, na passagem do ano de 1999 para o ano 2000, todas as vozes autorizadas garantiam que a simples mudança de dígito iria gerar um crash global. Uma espécie de 09/11 informático antes de tempo. Esse Millenium Bug chegou a ser tratado, numa das Newsweek do fim de 1999*, através da expressão “banho de sangue”. As estimativas retiradas dessa mesma publicação eram e são, no mínimo, curiosas e, claro, tremendistas: 1º – Segunda Grande Guerra Mundial II – 4,200 biliões de dólares. 2º – Reconversão informática mundial do ano 2000 – 600 biliões de dólares. 3º – Guerra do Vietname – 500 biliões de dólares. 4º – Terramoto de Kobe – 100 biliões de dólares. 5º – Terramoto de Los Angeles – 60 biliões de dólares. Às vertigens das viragens tecnológicas corresponderá o sorriso congelado da nossa menina de cabelos em ninho de cegonha (que cantarolaria as ventanias de Eduardo Nascimento). A memória avança na nossa direcção com o objectivo de devorar, é certo. E fá-lo para que se perceba – e para que se volte sempre a perceber – a impossibilidade de se ser e de se estar em tempos diferentes. Presos ao futuro (e ao encanto dos seus pequenos projectos), os humanos viajam num ‘agora’ em movimento, mas um ‘agora’ que nunca se converte num outro ‘agora’ de modo nenhum. Uma tragédia em si mesma, dir-se-á. Se Ruy Belo falava das tragédias de uma determinada época (Morte ao Meio dia, por exemplo, é um poema revelador dos sixties portugueses -“No meu país não acontece nada/ à terra vai-se pela estrada em frente/ Novembro é quanta cor o céu consente/ às casas com que o frio abre a praça”*), outros poetas houve que expressaram tão bem esta tragédia de fundo que consiste, ao fim e ao cabo, em não se ser de tempo nenhum. Razão por que se fala sempre do “meu tempo”, essa ilha isolada do existir a que nunca se regressa e para que nunca mais se caminha. No Fausto, Pessoa repisava o tema: “Tudo que vemos é outra coisa./ A maré vasta, a maré ansiosa,/ É o eco de outra maré que está/ Onde é real o mundo que há”*. Fiquemos, pois, com o eco, esse espanto inexplicável que é olhar para a fotografia do Rossio da Lisboa dos anos sessenta e crer que ele nunca terá realmente existido. Esse, sim, é o verdadeiro bug. E ali ao pé do café Gelo, com o Diário Popular debaixo do braço, lá vou eu, mão na mão, aconchegadinho, com a menina de cabelos em ninho de cegonha a saborear-lhe o rouge. E o vento mudou e ela não voltou. *Beyond 2000 em Newsweek, NY, November 8,| Vol. 154 No. 19, 1999. *Belo, Ruy; Home de Palavra(s), Assírio e Alvim, (1970) 2016. *Pessoa, Fernando; Fausto, Tinta da China, Lisboa (1907-1933) 2018.