A priorização da segurança humana

[dropcap]”[/dropcap]At the end of the day, the goals are simple: safety and security.”

Jodi Rell

A 10 de Março de 2019, um avião da Ethiopian Airlines despenhou-se logo após a descolagem, matando cento e cinquenta e sete pessoas que se encontravam a bordo e nas horas após o acidente, mesmo antes de as autoridades recuperarem as caixas negras do avião, o mundo começou a questionar a segurança da aeronave. O Boeing 737 Max 8, foi anunciado como o futuro da aviação, graças à sua impressionante economia de combustível e toques futuristas, como música na cabine e nova iluminação LED. É um avião que começa uma nova fase na era da economia de combustível de dois dígitos em relação à geração anterior.

Os dois acidentes com aviões Boeing 737 Max 8 em apenas cinco meses, deixou o mundo consternado pelas consequências de perdas de tantas vidas humanas, e torna-se difícil não pensar a razão pela qual a Boeing resistiu aos esforços de manter os aviões no solo. A Southwest Airlines e a American Airlines, duas companhias aéreas americanas continuaram a voar, até o presidente Trump anunciar que os aviões se manteriam no solo, revertendo uma decisão anterior da Administração Federal de Aviação (FAA na sigla inglesa). A União Europeia (UE), a 12 de Março de 2019, proibiu o uso de aviões Boeing 737 Max 8 e 9, e que voassem no seu espaço aéreo. Os Estados Unidos ainda não tinham tomado qualquer decisão nessa data.

Todavia, em questão de meses, dois acidentes de avião Boeing 737 Max 8, pertencentes à Lion Air e a Ethiopian Airlines deixaram aos especialistas o benefício de descobrir se o avião é parte da equação ou se é apenas uma coincidência horrível. As companhias aéreas de muitos países, no entanto, não esperaram pela resposta e poucas horas após o acidente, a Ethiopian Airlines anunciou que iria manter no solo todos os seus aviões Boeing 737 Max 8. A China seguiu o exemplo, bem como Singapura, Austrália, Malásia e Reino Unido. Mas nesse momento, enquanto muitos países decidiam manter os seus aviões Boeing 737 Max 8 no solo, os mesmos continuavam em serviço nos Estados Unidos.

A American Airlines, enquanto apresentava as suas condolências às famílias e amigos dos passageiros que estavam a bordo do voo 302 da Ethiopian Airlines, afirmava que continuaria a voar com tais aeronaves pois não existiam factos concretos sobre a causa do acidente, além das notícias propagadas e que as suas equipas de voo, operações técnicas e de segurança, monitorizariam a investigação na Etiópia, dado ser o seu protocolo padrão para qualquer acidente de aeronaves. A American Airlines continuaria a colaborar com a FAA e outras autoridades reguladoras, dado que a segurança dos membros das suas equipas e clientes eram a sua prioridade número um, e que tinham total confiança na aeronave e nos membros da sua tripulação, que eram os melhores e os mais experientes do sector.

A FAA, entretanto, compartilhou a sua declaração de apoio à Boeing e aos aviões modelo 737 Max 8, afirmando que relatórios externos estavam a ser elaborados, delineando semelhanças entre o acidente da Ethiopian Airlines e o da Lion Air, ocorrido a 29 de Outubro de 2018, bem como as instruções de aeronavegabilidade continuada para a comunidade internacional, pelo que a investigação apenas tinha começado e não tinham recebido dados suficientes para retirar conclusões ou tomar quaisquer medidas. A FAA observou que exigiu mudanças de projecto na aeronave para serem realizadas até Abril de 2019. As alterações eram o resultado do acidente da Lion Air e não do recente acidente na Etiópia.

A Boeing defendeu os seus planos e declarou que especular sobre a causa do acidente ou discuti-lo sem deter todos os factos necessários não era apropriado e poderia comprometer a integridade da investigação. A outra companhia aérea americana, a Southwest Airlines, que actualmente opera com aviões Boeing 737 Max 8, disse que planeava continuar a usar os aviões, mas monitorizaria a investigação em curso. A Southwest Airlines possui trinta e quatro aeronaves modelo MAX 8, sendo a sua frota de setecentos e cinquenta Boeings 737, pelo que continuavam confiantes na sua segurança e aeronavegabilidade, e as aeronaves do modelo MAX 8 tinham produzido milhares de dados positivos durante cada voo, que são constantemente monitorizados, tendo realizado mais de quarenta e um mil voos e detinham informação suficiente que indicava a eficácia dos seus padrões operacionais, procedimentos e treino.

Todavia a Southwest Airlines, estava a ajudar a retirar o medo dos seus clientes, permitindo que as pessoas mudassem de avião se desejassem. Após dois dias do acidente da Ethiopian Airlines e de pressão crescente, os Estados Unidos mantiveram no solo os aviões Boeing 737 Max 8, revertendo uma decisão anterior em que os reguladores americanos afirmaram que os aviões poderiam continuar a voar. A decisão, anunciada pelo presidente Trump, seguiu determinações de reguladores de segurança de quarenta e dois países de proibir os voos desses aviões, que se encontram imobilizados no solo em todo o mundo. Os pilotos, comissários de bordo, consumidores e políticos dos principais partidos políticos americanos reivindicavam que os aviões permanecessem no solo nos Estados Unidos.

Apesar do clamor, a FAA estava decidida, e afirmava que não havia problemas sistémicos de desempenho que levassem as duas companhias aéreas a suspender os voos dos aviões. A 13 de Março de 2019, tudo muda quando, em uma sucessão relativamente rápida, autoridades de aviação americanas e canadenses disseram que estavam a manter no solo os aviões depois de dados de rastreamento por satélite, sugerirem similaridades entre o acidente na Etiópia e o da Indonésia. A segurança do povo americano e de todas as pessoas era a sua preocupação primordial, afirmaria o presidente Trump a repórteres na Casa Branca ao fazer o anúncio. É de entender que à medida que os aviões se tornam mais automatizados, alguns pilotos perdem habilidades de voo. O acidente do voo 302 da Ethiopian Airlines tem muitas semelhanças com o acidente da Lion Air. Os dados sobre a trajectória vertical do avião etíope na descolagem e os dados comparáveis ​​do acidente da Lion Air mostraram flutuações verticais e oscilações, e poucas horas depois, a FAA confirma que a sua decisão surgia depois da investigação que desenvolveu e de novas informações reveladas a partir dos destroços a respeito da configuração da aeronave logo após a descolagem.

Tomados em conjunto com dados recentemente refinados do rastreamento por satélite da trajectória de voo da aeronave, as informações indicaram semelhanças entre as quedas etíopes e indonésias que justificam investigações adicionais sobre a possibilidade de uma causa compartilhada para os dois incidentes e que necessitam de ser melhor compreendidos e abordados. A Ethiopian Airlines desde logo, informou que um dos dois pilotos da aeronave relatou ter problemas de controlo de voo aos controladores de tráfego aéreo, minutos antes de o avião cair e disse que queria voltar ao Aeroporto Internacional de Bole em Addis Abeba.

O piloto foi autorizado, três minutos antes do contacto se ter perdido com a cabine. Essa divulgação sugere que um problema com o controlo da aeronave, ou com o sistema computadorizado de controlo de voo poderia ter sido um factor. São descartadas qualquer hipótese de terrorismo ou outra interferência externa no funcionamento da aeronave, que tinha apenas alguns meses. As autoridades ao examinar o acidente da Lion Air levantaram a possibilidade de que um novo sistema de controlo de voo possa ter contribuído para esse acidente. A FAA, alertou que a investigação sobre o acidente da Ethiopian Airlines estava incompleta, e nenhuma determinação quanto à sua causa foi feita, nem qualquer conclusão final foi elaborada para o acidente indonésio.

Os dados de voo e os gravadores de voz, conhecidos como caixas negras no desastre da Etiópia foram recuperados e serão analisados ​​na França, pelo que ainda se tem muito para aprender antes de se poder afirmar que tiveram a mesma causa e efeito. Os acidentes colocaram a Boeing na defensiva. A companhia aérea de baixo custo, Norwegian Air, que tem uma das maiores frotas de Boeing 737 Max 8 fora dos Estados Unidos, disse que pedirá uma indemnização por manter os aviões no solo. O Boeing 737 Max 8 é o avião mais vendido da Boeing de todos os tempos e deve ser um grande estimulador de lucro, com mais de quatro mil e quinhentos aviões encomendados. As acções da empresa caíram cerca de 11 por cento na semana do acidente. A Boeing por seu lado está a apoiar esta fase proactiva com extrema cautela, e a cooperar para entender a causa dos acidentes em parceria com os investigadores, implantar melhorias de segurança e ajudar a garantir que tal facto não aconteça novamente.

Após o acidente indonésio, os sindicatos de pilotos reclamaram que não tinham conhecimento de uma mudança no sistema de controlo de voo do Boeing 737 Max 8 que poderia empurrar o nariz do avião automaticamente para baixo em certas situações. Acredita-se que a mudança no “software” tenha desempenhado um papel no acidente da Lion Air e também tenha sido um factor no acidente na Etiópia. A Boeing está a planear lançar uma actualização de “software” que está em desenvolvimento desde o acidente na Indonésia. A introdução de um novo recurso de controlo de voo consequente, sem qualquer requisito para o treino de pilotos, está a atrair mais atenção. As autoridades americanas planeiam conduzir uma investigação sobre a certificação do Boeing 737 Max 8 pela FAA, com o objectivo de saber o motivo pelo qual o órgão regulador não exigiu o treino dos pilotos a aprenderem a voar a nova versão. A FAA, transportadoras e fabricante irão trabalhar arduamente para tornar a imobilização dos aviões no solo no mais curto tempo possível, pois situações como estas são um alto teste para os líderes.

Ainda não está claro porque razão o avião da Ethiopian Airlines caiu. Os reguladores estiveram divididos, enquanto os da Ásia e Europa avançaram relativamente rápido com as proibições de voo, e nos Estados Unidos a FAA manteve a decisão de que a análise não mostra problemas sistemáticos de desempenho e não fornece uma base para ordenar a manutenção das aeronaves no solo. Os políticos e líderes da Boeing telefonaram ao presidente Trump garantindo a segurança dos aviões da empresa após um “tweet” presidencial que queixava de que os aviões estavam a tornar-se um caso muito complexo, afirmando desvairadamente “Eu não quero que Albert Einstein seja meu piloto”. A 13 de Março de 2019 mais de quarenta países imobilizavam os seus aviões. Toda esta confusão não traz benefícios nem aos investidores das empresas envolvidas, nem aos trabalhadores e passageiros. Ter-se-ia evitado grande parte da turbulência se os líderes da empresa tivessem feito um trabalho melhor em enquadrar a situação.  Os líderes têm uma tarefa crucial no início de um desastre em formação, devendo usar a arte de enquadrar para descrever a natureza do problema que a organização está a enfrentar.

Os modelos adequam a forma como pensamos os problemas e também as oportunidades e dizem qual a categoria de dificuldade que estamos a lidar, porque ao identificar um tipo de problema, também contém as sementes de acção e resposta. É de lembrar que durante a crise de envenenamento por Tylenol em 1982, a J&J, empresa multinacional americana de produção de dispositivos médicos, produtos farmacêuticos e bens de consumo embalados fundada em 1886, notoriamente declarou que se tratava de um problema de saúde pública.  Tal enquadramento deu início a todas as actividades que associamos à reacção padrão da J&J e a uma crise em que vidas humanas estão em jogo. Assim, todas as embalagens de cápsulas de Tylenol, contra o conselho do Food and Drug Administration (FDA), foram pela J&J substituídas por novas embalagens resistentes a adulterações e entregou as cápsulas recém-embaladas em um período de seis semanas.

Quando um segundo surto de envenenamento ocorreu quatro anos após o primeiro, a J&J declarou que só oferecia Tylenol em cápsulas, que não podiam ser separadas e lacradas sem que os consumidores soubessem. A J&J poderia ter descrito a natureza do envenenamento por Tylenol de muitas maneiras diferentes, como um ataque à empresa, um problema em algum lugar no processo de distribuição do Tylenol das fábricas para lojas de venda a retalho, bem como as acções de um assassino solitário e cada um desses enquadramentos teria levado a um conjunto diferente de acções. Se a J&J tivesse chamado de ataque ao envenenamento, teria desencadeado uma guerra dispendiosa e difícil de vencer contra estranhos e desconhecidos tentando destruir a empresa.

Se fosse um problema de processo, haveria uma revisão minuciosa da cadeia de fornecimento de Tylenol e possíveis falhas no sistema, e se acaso pudesse ser trabalho de um homicida? Sabemos como tais generalidades podem levar à inacção no sector e a culpar sistemas muito distantes da empresa e das suas responsabilidades. É de acreditar que o presidente da Boeing insistiu com o presidente Trump e outros de que a aeronave era segura. O treino é projectado para ajudar os pilotos a identificar e substituir os controlos automáticos do avião se os mesmos erroneamente dirigirem o seu nariz para baixo.  Assim, o quadro do presidente da Boeing foi pintado no sentido de que se é um problema técnico podia ser corrigido com o treino dos pilotos. Tarde demais. É um quadro bastante comum para o mau funcionamento de um produto, mas ainda não sabemos se a semelhança nos dois acidentes é uma coincidência ou o sinal de um problema sistemático que precisa de ser corrigido.

Além disso, o quadro parece perder o momento, pois centenas de vidas humanas foram perdidas, e mais podem estar em risco, e os reguladores em muitos países imobilizaram os aviões.  As acções dos reguladores reflectem um quadro de priorização da segurança humana, que parece reflectir melhor os altos níveis de incerteza e risco que a Boeing está a pedir que aceitemos. O que poderia a Boeing ter dito de forma mais sensata? Talvez fosse melhor dizer que é um problema técnico que não dominam por completo e à luz dessa incerteza, recomendar a aterragem dos Boeings 737 Max 8 e 9 até terem a certeza de descobrir o que está a provocar as falhas e poder contentar a empresa, reguladores globais, transportadoras e passageiros e que possam ter todos a certeza do que está a causar essas falhas e de que os aviões são seguros para voar de novo.

Tal enquadramento leva a um caminho de acção muito mais claro e reconhece uma parceria com reguladores encarregados de proteger vidas humanas e teria sido melhor para todos os interessados ​​se a Boeing tivesse chegado a essa conclusão antes que o presidente americano aparentemente o fizesse. A questão principal para os líderes é o facto de ser necessário tornar a situação e o pensamento difícil. É necessário decidir que tipo de problema se está a enfrentar, e descrevê-lo em linguagem clara que ajudará as pessoas que o têm de resolver na empresa, bem como os que estão a julgar de fora, a entender como a empresa está a pensar e que tipo de problema enfrenta. O enquadramento é uma ferramenta para ser usada conscientemente. Se for bem utilizada, pode fazer uma enorme diferença em inspirar a acção responsável e confiar no julgamento e nos valores da empresa, mesmo que, como no caso da J&J, o problema não esteja totalmente resolvido e precise de ser abordado de novo.

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