Casa

[dropcap]D[/dropcap]esde que o nomadismo passou de moda, com a revolução neolítica, desde que se começou a praticar agricultura e pecuária (pré-CDS PP) e o sedentarismo (ainda longe do sofá e Netflix) passou a ditar as regras do jogo, que as moradias se tornaram num bem de primeira necessidade. Morada, fixação, quatro paredes que seguram o tecto pelos colarinhos, a casa onde se habita ganhou o papel do centro da existência. Confere a permanência, santuário, um sítio para regressar.

Com tão vital importância, seria de esperar que as casas fossem propriedades dignas de estima, merecedoras de cuidados e manutenção. Não é o que se passa em Macau, terra de recente abundância onde a patobravice bate recordes mundiais. Casas são sinónimo de investimento, de riqueza num panorama de boom permanente. O que não garante que a sua construção valha cuidados. Em especial no que toca a acabamentos.

Claro que esta reflexão não abrange todas as casas de Macau, porque o dinheiro e a influência conseguem tudo. Ainda assim, é relativamente comum, em prédios onde os apartamentos valem uns bons milhões, as caixilharias das janelas não vedarem completamente, colocando em causa a utilidade de se das paredes e exponenciando o uso de ar-condicionado.

É completamente natural que as tomadas de electricidade não aguentem nenhum aparelho deste final de segunda década do segundo milénio do calendário messiânico. Daí a proliferação de curtos-circuitos, perigos vários e mortes trágicas e evitáveis como a que arrancou a vida a um idoso, na passada noite de quarta-feira, no Fai Chi Kei.

Esquentadores e termoacumuladores são instalados ao pontapé, onde couberem, com ligações coladas a cuspinho, a encher divisões exíguas com monóxido de carbono em. O resultado desde descuido viu-se mais uma vez na madrugada de sábado, na Areia Preta, quando mãe e filho foram parar ao hospital devido a intoxicação com monóxido de carbono. Respirar este gás não tem pequenas consequências. A pessoa não fica com caspa, ou cãibras nos joelhos. Se o pai da família que vive na Areia Preta não tivesse encontrado o filho a tempo, hoje estaria a chorar a sua morte.

É comum ver canalizações que juntam o que sempre devia estar separado, com tubagens e entrar e sair por todos os lados, máquinas de lavar roupa instaladas em varandas, trinta por uma habitacional linha. Ah, recordo que esta é a terra dos talentos, principalmente no que toca a remendos da candonga.

Também os rebocos fazem lembrar nevões constantes, uma matéria que simplesmente recusa adesão à casa, que não está interessado em pertencer. Ferrugem que alastra, humidade que assassina estruturas, manutenção anedótica que escarra na cara de quem paga rendas exorbitantes.

E, se me permitem, abro aqui um pequeno parágrafo dedicado à habitação pública. Ok, num mundo ideal, estas casas deveriam ser atribuídas a quem mais delas precisa, aos que ficam reduzidos a pó numa terra que brinda à desigualdade de riqueza. Mas não gozem com as pessoas. Inaugurar enormes blocos de apartamentos, que assim que nascem já mostram sinais de extremo envelhecimento não só demonstra total desprezo pelo dinheiro de todos, pelo tão afamado erário público, como parece uma piada de mau gosto às custas de que mais precisa de tecto.

Este é o panorama, de uma forma abreviada, do desleixo que se vive no mercado da habitação de Macau, em particular o do arrendamento. Resultado de um somatório de circunstâncias para as quais nada é feito e que parece quere empurrar-nos de novo para tempos de nomadismo, quando se vivia como se o conceito de fronteira não existisse.

Num território que se afirma socialista, quando há necessidade de mexer em algo que implique interesses, como a selvajaria do mercado imobiliário, não se encontra uma forma para regular o quer que seja. Num território onde a terra pertence ao Estado, com uma parcela importante de quota do sector adstrito à habitação pública, o mercado não é livre, é libertino, no pior sentido da palavra. Aqui me confesso, do fundo das minhas entranhas forças invisíveis clamam por libertinagem. Discípulo do divino marquês me assumo, nesta pouco filosófica alcova plantada à beira do delta da rebaldaria.

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