A morte do cônsul e a quase ocupação de Macau pelos japoneses na II Grande Guerra

Em 1945 o cônsul japonês Yasumitsu Fukui, destacado para Macau, foi assassinado por um gangue chinês. A morte esteve ligada a uma tentativa de ocupação de Macau pelos japoneses, que iria servir para a defesa de um possível ataque dos americanos via Hong Kong. Este e outros relatos constam nas memórias do embaixador japonês em Lisboa durante a II Guerra, Morishima Morito, recentemente traduzido para português, e que poderá chegar às livrarias

[dropcap]N[/dropcap]o tempo em que Macau sofria as consequências da chegada de milhares de refugiados de Hong Kong e da China, devido à ocupação japonesa nos dois territórios, ocorreu um assassinato que poderia ter causado um incidente diplomático entre o Japão e Portugal e que esteve ligado a uma vontade dos japoneses de ocuparem Macau.
A história é revelada no livro de memórias do embaixador japonês em Lisboa durante a II Guerra Mundial, Morishima Morito, de nome “Pearl Harbor – Lisboa – Tóquio: Memórias de um diplomata”, e que foi traduzido para português em finais do ano passado. Pedro Ramos, responsável pela publicação e editor da Ad Litteram, garantiu ao HM que já está em conversações com Macau para que a obra possa estar disponível no território.
No livro, ao qual o HM teve acesso, lê-se que “em 1945, no início do inverno, o cônsul Yasumitsu Fukui, acreditado em Macau (…) foi assassinado a tiro por um gangue chinês”, começa por contar Morishima Morito, que enviou posteriormente um telegrama ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) do Japão.
Neste telegrama pedia-se a “emissão formal de um pedido de desculpas por parte do Governo português a propósito deste incidente”, além de uma mobilização “de todos os meios possíveis de busca e detenção dos autores e das pessoas responsáveis pelo ataque e puni-los quando forem presos”. Nesse documento pedia-se também a Lisboa o pagamento de uma indemnização, um valor que seria abatido na dívida cobrada pelo Governo de António de Oliveira Salazar aos japoneses por terem ocupado Timor-Leste.
A ideia para esse acordo partiria do próprio Morishima Morito. “Cheguei à conclusão de que, neste caso, não se deveria exigir uma indemnização ao governo português, porque haveria fortes probabilidades de tal exigência o levar a apresentar pedidos de indemnização pelos actos de violência cometidos pelas tropas nipónicas em Timor.”
Nessa fase, o embaixador chegou a dialogar com Teixeira de Sampaio, secretário-geral do MNE em Portugal, para se dar início às conversações. Quando a II Guerra Mundial chegou ao fim, “o Governo português estava inclinado a propor uma indemnização fosse abatida nas indemnizações de vidas pelo Japão a propósito dos actos que os seus militares tinham cometido em Timor”.

Os motivos políticos

No meio deste processo, chegou-se à conclusão que a morte do cônsul japonês tinha ocorrido por questões políticas, uma vez que este não tinha inimigos no território, recordou Morito nas suas memórias.
“Fukui tinha o hábito de participar todos os dias numa sessão matinal de ginástica organizada pela comunidade nipónica. Nesse dia, ao regressar da sessão, foi assassinado por chineses que o atacaram e balearam.”
Na altura o Governo de Macau chegou a elaborar um relatório sobre este assassinato, que acabou por ser classificado como “um crime comum”, uma vez que ocorreu “durante um trajecto da sua vida particular [de Fukui]”.
“Num caso destes a responsabilidade das autoridades só pode ser invocada por negligência, por exemplo, se o cônsul tivesse sido ameaçado e prevenido as autoridades, pedindo-lhes expressamente protecção, e estas tivessem decidido não tomar quaisquer medidas de vigilância. Porém, não foi este o caso.”
Morito escreve que o cônsul era uma “pessoa cordial e leal que se dava muito bem não só com os colegas e residentes japoneses mas também com a população chinesa em geral”, pelo que “não era possível que alguém tivesse qualquer tipo de rancor contra ele”. Neste sentido, o embaixador defendeu que existiram “motivos políticos bastante fortes” para a morte.
Esses motivos são relevados no mesmo capítulo, sobre uma “conspiração” que estaria a ser preparada pelos japoneses para uma ocupação sobre Macau.
Depois deste incidente, Teixeira de Sampaio avisou os japoneses de que estariam a ocorrer situações que violavam a soberania do Estado português. No telegrama, lia-se que “em Macau, as forças japonesas não avisaram o Governador do território e destacaram o coronel Sawa (chefe dos serviços secretos do exército) que está a formar pessoal”.
Lia-se também que “é do conhecimento público que o coronel Sawa tem andado a prender e a executar chineses sem ter poderes para tal”. “No entanto, tendo em conta a situação actual das relações bilaterais entre as duas nações, o Governo de Macau está a dar um consentimento tácito a estes incidentes frequentes.”
Perante isto, Morito percebeu “pela primeira vez que estava desvendado o mistério do assassinato do cônsul Fukui”, uma vez que depois da sua morte ocorreram “disparos contra as instalações do Consulado-geral do Japão, trocas de tiros entre japoneses e chineses e outros confrontos”.

A tentativa de ocupação

As memórias de Morishima Morito revelam que chegou a existir “um plano do exército japonês para ocupar Macau”, o que levou Teixeira de Sampaio a enviar um telegrama onde solicitava “muito discretamente a atenção das autoridades nipónicas”.
O referido telegrama dava conta de que, em Macau, os japoneses não teriam avisado o Governo do destacamento do coronel Sawa, à data chefe dos serviços secretos do exército japonês, e que estaria a formar pessoal. “É do conhecimento público que o coronel Sawa tem andado a prender e a executar chineses sem ter poderes para tal”, o que, na visão de Teixeira de Sampaio, se tratava “obviamente de uma violação da soberania do Estado português”.
“Tendo em conta a situação actual das relações bilaterais entre as duas nações, o Governo de Macau está a dar um consentimento tácito a estes incidentes frequentes”, escreveu o secretário-geral do MNE. Para Morito, “estava desvendado o mistério do assassinato do cônsul Fukui”, uma vez que, depois da sua morte, ocorreram mais incidentes tal como “disparos contra as instalações do Consulado-geral do Japão, trocas de tiros entre japoneses e chineses e outros confrontos”.
Começa-se então, a pensar na ocupação do pequeno território a sul da China. “Começava a ser discutida com mais insistência a possibilidade do envio de um destacamento militar para Macau, cujo objectivo seria a protecção dos cidadãos japoneses residentes, pois não se podia contar apenas com o Governo de Macau para manter a segurança pública na eventualidade de uma ofensiva militar norte-americana em Hong Kong.”
De seguida, impôs-se um bloqueio a Macau, uma acção que “provocou um grande sofrimento a cerca de 300 mil chineses, cuja vida quotidiana se tornou bastante difícil devido ao aumento dos preços, sobretudo dos produtos alimentares, e à escassez de alimentos no mercado”.
Na visão de Morishima Morito, “poder-se-ia concluir, perante as circunstâncias, que a crise diplomática entre o Japão e Portugal não era tanto a questão de Timor, mas centrava-se nos problemas em torno de Macau”.
O embaixador sugeriu depois o encerramento “imediato da agência do coronel Sawa” e o “levantamento imediato do bloqueio a Macau”. Só depois dessa decisão é que as autoridades japonesas nomearam Masaki Yodogawa como novo cônsul, uma vez que este “dominava bem a língua portuguesa e acompanhara o observador português a Timor pouco tempo antes”. No final da II Guerra, Sawa seria acusado de crimes de guerra e executado pelos chineses.

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