VozesRealidade João Luz - 5 Nov 20185 Nov 2018 [dropcap]A[/dropcap] realidade já não mora aqui, mudou-se de malas e bagagens para a Rua da Amargura. Se quiser endereçar questões, por favor considere uma outra opção da sua preferência, porque é nesses termos que nos encontramos. Vivemos tempos de realidade customizada, personalizada, feita à sua medida. Lembra-se da promessa quimérica de tornar a fantasia em realidade?! Pois é, o devaneio, o sonho está no comando das operações. A verdade depende de quem a compra, está intimamente ligada à posição do indivíduo no espectro político, social, futebolístico, emocional, por aí fora. Hoje em dia, a realidade é uma opção, uma escolha que se pode contornar caso mexa com as crenças pessoais. Hoje em dia, o fascismo pode ser um movimento de esquerda e o comunismo um regime de direita. A água pode ser usada para secar algo e o calor fazer gelar a mesma água. Tudo o que existe, perceptível ou não pelos sentidos, pode ser transformado no seu completo oposto. A febre ideóloga derrubou as fronteiras dos conceitos e significados, aliada à total falta de informação e conhecimento, cujo vazio afectivo foi substituído por propaganda também ela personalizada. A realidade tornou-se uma ofensa, uma provocação pessoal que afronta a crenças solidificadas nas redes sociais. O ser humano moderno é, essencialmente, um internauta, um troll, um soldado armado de tecnologia, pronto para disparar rajadas de incongruências raivosas na guerra aos factos. Se um jornal citar ipsis verbis as declarações de alguém que têm pontos de vista factualmente odiosos, que lança ameaças de violência contra inteiros grupos sociais, esse artigo será caracterizado como o equivalente a odiar quem proferiu tais palavras e, além disso, declarado falso apesar de ser uma compilação de citações. Nada está seguro neste mundo pós-real, pós-factual. A realidade é uma condicionante emocional, uma circunstância que pode ofender o frágil estado afectivo do Homo Facebookis. Factualidade divide-se entre identificação ou ofensa. Não existe neutralidade nesta guerra sem quartéis. Ou estás comigo ou contra mim. Sem nuance, sem contexto, sem noção, só confronto e barricadas invisíveis de lados que se digladiam por nada. A ironia de esta crise acontecer numa altura em que o ensino chega a mais pessoas que nunca, em que o conhecimento é livre e disponível, ultrapassa os limites da comédia em direcção à tragédia. Séculos de conhecimento adquirido são pulverizados num segundo por um meme idiota de internet. Estamos a atingir níveis de estupidez que colocam em risco a sobrevivência do planeta. Vacinas passaram a ser vistas como uma arma biológica de propagação do autismo, a Terra voltou a ser plana, o Homem nunca foi à Lua, escapes de aviões são gases libertados pela população com um objectivo nefasto à escolha do freguês, os jornalistas são perigosos elementos perturbadores da paz numa sociedade onde resquícios tríades ainda deixam rasto. O comunismo está em todo o lado, apesar da queda da União Soviética há quase 30 anos e da China idolatrar o dinheiro de uma forma que faria o mais fervoroso capitalista corar. Aliás, o bicho-papão do comunismo tem actualmente uma cotação equiparável aos tempos de caça às bruxas dos anos 1950. Nesse aspecto, a queda da Venezuela foi instrumental, uma dádiva caída dos céus para a diabolização de tudo o que tem a palavra social. A realidade é opcional, um capricho etéreo, um fantasma intocável face à soberana materialização do “Eu”. O ego está claramente a ganhar ao mundo tangível, mensurável e comprovado. O Homem retorna ao umbigo. História, ciências exactas, matemática e conhecimento adquirido são potenciais ameaças à suprema afectividade do narcisismo. Orgulho e vaidade são o prato do dia, num menu onde já não consta a razão.