VozesMulher de papelão João Luz - 29 Out 2018 [dropcap]O[/dropcap]mbros arqueados num ângulo semelhante à geometria das pernas, que em tudo se assemelha à forma do carrinho que empurro pelas ruelas da cidade. O meu corpo transforma-se, adapta-se a esta tarefa que podia ser um dos doze trabalhos de Héracles. A minha fisionomia perde, diariamente, a forma e a suavidade angular a favor das arestas rectas, a minha aparência copia o desenho funcional do carrinho que empurro. Como se os meus ombros, cotovelos e costas tivessem sido soldados pela biologia de bate-chapas, como se os meus ossos fossem feitos de metal e os ligamentos, nervos e músculos fossem parafusos e juntas. Dobro-me como ferro moldado pela fornalha do tempo e dos árduos labores, o meu corpo sem o carrinho não faz sentido, fica perdido, sem função, sem matéria para impelir, sem forma. O meu esqueleto precisa de empurrar algo, é um suporte, a minha natureza é impulsionadora. Sem esse amparo mal me aguento nas pernas arqueadas em angulosa rectidão. Apanho papelão, cartão, todo o sortido de embalagens que o mundo produz em excesso e que são o refugo do consumo, tudo o que resta a todos é o meu sustento. Sou o reflexo humano das sobras de papelão que resultam do fim do comércio, o resultado do desfecho do ciclo do transporte de mercadorias que sobeja nas traseiras das grandes superfícies. Sou o desperdício que vive do desperdício. Também em tempos idos tive outros desígnios que não este. Fui mãe, filha, mulher, tia e sobrinha, fui amante, desejei e fui desejada, até resvalar para o esquecimento numa cidade demasiado egocêntrica para atentar nos que caem sem suporte. Ainda assim, não me rendo às adversidades. Pago com o corpo todas as patacas que consigo amealhar para a minha subsistência. Estou no degrau mais baixo da escala social, mas não me poupo a esforços neste duro quotidiano de catar papel. Limpo a carne que resta das ossadas que são deitadas fora após o grande banquete do retalho. Sou força motriz, aniquiladora da inércia, a resposta vigorosa perante montanhas de adversidades, sou o dínamo, a potência, a veemência, a determinação que recusa baixar os braços. Olhos postos no horizonte, apesar de cabisbaixa, galgo metros entre o trânsito e o congestionamento dos passeios. Sou a Rainha da termodinâmica, o motor do verdadeiro empreendedorismo que está a milhas de distância daquele que se multiplica nas páginas dos jornais, onde filhos de bilionários mostram onde gastam o outro papel que as gerações anteriores juntaram, muitas vezes às custas dos meus antepassados. Sou a negação da inércia, velocidade e massa em movimento. O equivalente humano a uma lei de Newton a empurrar matéria-prima para reciclagem San Ma Lo acima. Enquanto toda a gente corre, contrai empréstimos, marca férias, é promovido, despedido, protesta contra o aumento da mensalidade do condomínio, eu respiro expiração dos escapes na esperança de ter o suficiente para um prato de arroz. A minha presença é volumosa, atabalhoada, um problema para a natural fluidez dos leitos de gentes e carros. Ainda assim, sou invisível. A minha condição oculta-me, torno-me impalpável, incorpórea, uma montanha de cartão empurrada por um fantasma. Todos me contornam como se não existisse. Mas eu continuo aqui, a empurrar o mundo todos os dias.