História | Viagem ao passado dos piores tufões que assolaram Macau

Em altura de rescaldo da passagem do tufão Mangkhut, olhamos para trás e regressamos mais de um século às tempestades que devastaram Macau e a região. Um dos mais fatais tufões de que há memória ocorreu há quase 144 anos e provocou cerca de 5000 mortos no território

[dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]o dia 22 de Setembro de 1874, Macau acordou para uma manhã radiosa banhada a sol, a convidar a um passeio. Ao largo da baía da Praia Grande, as lorchas de pesca dedicavam-se afincadamente à labuta do mar, enquanto que em terra a vida prosseguia no seu ritmo normal.

Ao começo da tarde, os pescadores regressaram a terra firme com o terror espantado nos rostos gritando “tai-fong!”, que pode ser traduzido como “grande vento” e que foneticamente se assemelha à palavra que usamos em português. O que se seguiria ficou marcado na história de Macau como um dos mais negros episódios nascidos de uma catástrofe natural.

Em 2014, do Arquivo Histórico saiu o material para a mostra “Em Tempo de Tufões – Exposição de Documentos Históricos de Macau”. No catálogo da exposição, pode-se ler que durante a tempestade de 1874 “os ventos violentos, as ondas enormes e os incêndios danificaram um número incalculável de prédios e de infra-estruturas, duas mil embarcações de pesca e mercantis naufragaram. Cerca de 5000 pessoas morreram: 3600 na península, 1000 na Taipa e 400 em Coloane. Perderam-se bens, cujo valor atingiu dois milhões de moedas de prata”.

Um dos registos mais fidedignos e elegantes em termos linguísticos foi redigido por um secretário do Governador, que passou para escrito o terror que havia testemunhado. Um artigo dos anos 90 da Revista Macau, transcreveu o relato de Pedro Gastão Mesnier, publicado no Boletim Oficial da Província de Macau e Timor que passamos a transcrever:

“Durante toda a semana anterior, não tinha havido tão formosa madrugada. Centenas de lorchas de pesca, aproveitando o bom tempo, velejavam à vista da Praia Grande, na larga bacia de mar, que se estende até à ilha de Lantau, e todos estavam entregues à mais tranquila confiança, enganados pelo aspecto risonho da atmosfera. Eram três horas da tarde, e os marinheiros chineses, assustados pela transformação súbita da atmosfera, corriam a abrigar as embarcações em lugar seguro. Impelidas pela brisa cada vez mais fresca, debaixo do firmamento, que de momento a momento se tornava mais medonho, e fazendo espumar sob as rápidas quilhas as águas esverdeadas do nosso porto, milhares de juncos se precipitavam, em confuso tropel, fugindo perante as ameaças que todos aqui sabem compreender.

Ao pôr do Sol, os seus raios quase horizontais, refractos pelo raro véu de vapores que cobria o ocidente, derramaram subitamente pelo firmamento uma cor vermelha intensa, que envolvia tudo nos seus ardentes reflexos. Parecia que se abria subitamente a boca de enorme fornalha. Durou poucos instantes o fenómeno luminoso.”

A chegada do tufão

O relato de Pedro Gastão Mesnier prossegue com a descrição do ponto mais feroz da tempestade. “À meia noite, eram já violentíssimas as rajadas. No Porto Interior, desabrigado do lado Norte, as águas estavam mais desinquietas. Sacudidas pelo ímpeto do temporal, algumas lorchas principiaram a perder a amarração, e apenas se desligavam das âncoras, eram arrastadas em vertiginosa carreira, sobre as vagas espumantes, pelo esforço combinado do mar e do vento.

Os nossos navios de guerra, a escuna Príncipe D. Carlos, navio de vela de 150 toneladas, a canhoneira Tejo a vapor de 300 toneladas, e a canhoneira Camões de 80 toneladas, ancoradas entre a Alfândega e a Fortaleza da Barra, viam estas moles passando desordenadamente em todas as direcções, acrescentando mais os perigos com que já se encontravam a braços.

A escuna Príncipe D. Carlos, abalroada pela massa de juncos, que se despegara como as neves nos mares árticos durante um debacle foi envolvida, arrancada da sua posição, e seguiu a mesma desesperada carreira, indo-se perder por fim, no interior das terras da ilha da Lapa; a Tejo, depois de receber terríveis choques, escapou milagrosamente de perder os seus ferros; a Camões foi parar pelo rio acima, numa várzea de arroz.

Estes acontecimentos haviam principiado quando ainda a parte da cidade exposta a Leste pouco sofrera. Eram duas da manhã, e o barómetro descia com maior rapidez do que antes, quando de repente o vento mudou de Norte para Leste. Essa mudança foi súbita, quase instantânea; houve um segundo de calma, e logo, com indescritível violência, uma rajada ululante varreu toda a extensão do Mar de Lantau. Foi o sinal.

Encapelando-se em montes sobrepostos, o mar levantou-se numa vaga medonha, e sopesando-se um instante, precipitou-se de chofre sobre toda a parte oriental da cidade, desde o forte de S. Francisco até à Barra. As portas das casas da Praia Grande foram arrancadas, e a água inundou os andares inferiores, as árvores arrancadas, as cantarias dos parapeitos desmoronadas vinham ferir as casas de envolta com as vagas.

Entrava o temporal numa fase, em que mal se pode descrever o excesso de furor, com que o vento e o mar se precipitavam sobre esta cidade como se a quisessem eliminar da superfície da terra. Um estrondo constante, furioso, e rugidor, composto das vozes mais temerosas que a natureza pode soltar na sua ira, estrugiam pelos ares: mal se podiam ouvir duas pessoas vizinhas, e de vez em quando, as vibrações mais fortes da tempestade, acompanhando o esforço aumentado dos elementos, infundiam espanto e terror nos infelizes que viam os seus abrigos ameaçando sepultá-los sob as ruínas. Com o ímpeto das rajadas, dos escarcéus e os choques do mar, o solo estremecia como se estivesse sofrendo um terramoto.”

Na altura, ainda não havia o actual sistema de aviso por código de sinais numerado, que viria a ser adoptado pela Capitania dos Portos de Macau apenas em 1912, de acordo com os sistemas usados nas zonas costeiras da China e Hong Kong.

O nome das coisas

A tempestade que marcou o final do século XIX não é a primeira registada pelas autoridades de Macau. Para encontrarmos o primeiro registo temos de regressar a 5 de Setembro de 1738. À altura, o tufão foi considerado como o pior no território e que mais estragos causou até à data. Obviamente, esta medição não tem qualquer suporte científico, sem registos de velocidade. Estávamos ainda longe de dar nome às tempestades.

O baptismo das tempestades viria a acontecer depois da 2ª Guerra Mundial, pelo contingente norte-americano do Centro de Alerta Contra Tufões de Guam. Neste aspecto, importa salientar que até 1979 todas as tempestades tiveram nomes femininos.

Já no século XX, Macau foi fustigado por um conjunto de tufões que ainda estão bem presentes na memória dos mais velhos. De acordo com os relatórios anuais dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos (SMG) sobre tempestades tropicais, entre 1953 e 1983 morreram quatro pessoas na sequência de três tufões. Em 1957, o tufão Gloria ceifou duas vidas. Em 1964, morreu uma pessoa depois da passagem do Ruby, igualando o registo do tufão Lynn de 1981.

Antes do Hato, Macau não registou perda de vida desde o tufão Hellen, que em 1983 provocou “mais de uma dezena de mortos, especialmente devido ao afundamento de juncos”, de acordo com o relatório anual dos SMG.

O número de fatalidades provocado pelo Hellen não chegou a ter uma contagem oficial. Porém, a imprensa local noticiou, à altura, o falecimento de 18 pessoas, a maioria na sequência de naufrágios no Porto Interior. Desde então, só o Hato teve um balanço mortal em Macau.

A braços com as consequências das alterações climáticas e da subida da temperatura dos oceanos, os registos dos SMG mostram uma tendência alarmante para o futuro. De 1956, ano em que começa a recolha de dados pelos serviços, até antes do Hato, apenas cinco tufões levaram ao hastear do sinal máximo de tufão. Em pouco mais de um ano, Macau já passou por duas tempestades passíveis de levar ao alerta de maior severidade. Um rumo que coloca as vidas dos residentes de Macau à mercê do mortal capricho dos ventos.

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários