Fim do dia II

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]que sucede nesse hiato? Eu levo comigo o trabalho, não o deixo fora. Mas já não funciono bem. Por outro lado, embora estando já em casa, eu ainda não cheguei. A situação: ter acabado de chegar a casa ainda não abriu para o seu conteúdo. Essas horas podem custar a passar por causa de uma desocupação de mim, desinvestimento da actividade profissional, ou lá o que estivemos a fazer. Não se inaugura nenhuma outra situação. Não estou disponível para estar em casa. Não consigo estar em mim e não estou fora de mim. Aquilo que me levava nas horas foi interrompido. A minha maneira de estar ao serão é diferente da minha maneira de estar no trabalho, porque formalmente se tratam de duas maneiras de ser completamente diferentes. E nada muda se trabalharmos a partir de casa. Aí até podemos ver o contraste. Não que até essa hora estivéssemos numa divisão do gabinete e depois na sala de estar ou na cozinha. O que muda é a vivência concreta do tempo em duas situações completamente diferentes. A minha maneira de estar quando a trabalhar é diferente da minha maneira de estar quando acabei de trabalhar, quando me deixei ficar por ali, por ter acabado a hora do expediente. Agora, estou presente em salas com peças de mobiliário. Estou com outros conteúdos: estou como quem está na sua sala de estar, mas eu não consigo estar lá. Não há nada que me entusiasme. Eu estou desocupado e não sou eu na minha maneira habitual de trabalhar ou de estar interessado com o que estou a fazer: estou expropriado da maneira como habitualmente me encontro, guiado pelas tarefas, pelo exercício de competências, na situação em que se desenham problemas e programas de resolução e de solução. Na sala de estar eu estou sem fazer nada e nada me interessa. Nada me descansa, não consigo estar em sossego, nem ver nada, nem ouvir nada, procuro inventar tarefas e não consigo ocupar-me. Estou impropriamente em mim.

Mas só aparentemente e primária e o mais das vezes. É justamente o que se percebe pelo contraste entre o dia de trabalho proveitoso e que correu bem e o enclave que o separa do serão, da noite. Podemos interpretar que ao serão somos mais nós, porque não somos definidos por nada que façamos, não somos oficiais de um ofício, profissionais de uma determinada área. Somos como quem está na sala de estar, à espera. Convivemos com maples, sofás, mesas, cadeiras, quadros, televisões, aparelhagens de som, rádio, livros. Mas não fazemos nada disso. A situação em que nos encontramos é de impermeabilização. Não estamos em nós, estamos expropriados da maneira de ser da zona de conforto, a que estamos habituados. Aí pode falar-se de inautenticidade num determinado sentido, expropriação, de um vivermos de um modo inqualificável: quem sou eu enquanto me encontro na sala de estar, mas não estou. Há uma interpretação diferente para este modo de ser que não é o modo como eu me encontro nem o mais das vezes nem primariamente e que pode abrir à dimensão em que a autenticidade constitutiva de mim se faz sentir, pode interpelar-me.

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