Mundos de papel

Gulbenkian, Lisboa, 27 Junho

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]isita rápida, em excelente companhia, à exposição «Pós-Pop. Fora do lugar-comum», que leva ainda como subtítulo a moldura enquadradora, «Desvios da «Pop» em Portugal e Inglaterra, 1965-1975». Desvios interessam sempre, guinadas para fora dos comuns lugares, mais ainda. A curadoria da Ana Vasconcelos e Patrícia Rosas desenhou percurso desafiante por entre surpresas e confirmações acontecidas, mais coisa menos isso, na década de 1965 e 1975, no eixo em L de Lisboa a Londres, com cotovelo em Paris. O passeio faz-se, além dos clássicos, está bem de ver, por entre paupérrimos materiais e outros tal o acrílico ou o poliéster, o natural perdido e química inventada. Com a matéria díspar veio, contaminado e contaminando, o quotidiano mais banal, nuclear. Lourdes Castro, além das suas sombras e perfis, desenha com os invólucros prateados dos doces da infância. A mais pura das tintas. O gozo da experimentação arrepia o caminho. A palavra brilha, como néon, omnipresente (onde está o nylon e a lycra?). Toca Teresa Magalhães, faz-se corpo com Ana Hatherly. Mas o que enche as salas são corpos, esse tema-abysmo inevitável. Corpos, corpos inteiros ou fragmentos, em dimensão ou reduzidos ao mínimo. Sérgio Pombo a perturbar com fragmentos de olhar pousado («Joelhos», algures na página). João Cutileiro a fazê-lo palco de lúdicos desejos. Depois tombo em Eduardo Batarda e podia para ali ficar, nas suas narrativas de impossíveis infra-heróis, no imenso burburinho em papel de golpes e contra-golpes. Lá estão, em frágil papel, corpos e texto a travarem-se de razões com a percepção do mundo. Parecem espelhar o lado de lá da grande janela (acrílico?) que abre para o jardim cheio de alegres. E patos.

Horta Seca, Lisboa, 29 Junho

Não sei quem disse ou escreveu, não me apetece procurar, que fique anónimo este saber óbvio: quando morre um homem, perdeu-se um mundo. Com a morte de Afonso Cautela (1933-2018) extinguem-se vários. Pioneiro do movimento ecologista, desconfio que nesses lugares se deu o nosso encontro, não tanto nos jornais, que eu ambicionava frequentar. Era alentejano e animou um jornal pleno de coentros quando a rega escasseava, A Planície, só na aparência regional, como outros, logo e penso no «meu» e do Drummond Jornal do Fundão. Cronista de mão cheia, era bem capaz de alimentar rotativas, como aconteceu com A Capital da minha adolescência, e não falava apenas do Planeta. Ou melhor, tratava-o como um todo. Partilhámos momentos e uma sala, ao Rato, em distintas militâncias, ele contra o terror sísmico nuclear, eu a favor da objecção de consciência. Recordo-o enxuto e ríspido, não sacrificava ao álcool, mas partilhei com ele das poucas refeições macrobióticas. Fez poesia, mas com lâminas. Ainda não tenho o primeiro volume, «Lama e Alvorada», que o José Carlos [Costa Marques] organizou para as Edições Afrontamento (tive pena de não saber do seu lançamento), mas quero voltar a lê-lo. Sem o esbofetear. «Não, não estou doente,/ não preciso de escolta,/ os rins funcionam, felizmente,/ ou por morrer também se paga multa?// Não preciso de nada,/ estou em ordem,/ despeçam-se de mim à bofetada/ e passem muito bem.// Deixem-me dormir que tenho fome/ e sede e sono,/ o meu corpo bebe e come/ dor e abandono.// Já tenho fato,/ metam-no na caixa,/ não esqueçam de pôr luto/ e nos sapatos, graxa.»

Campo Mártires da Pátria, Lisboa, 1 Julho

Vi-me à rasca, mas é costume, para encontrar onde comprar o primeiro Diário de Notícias da nova fase. Curiosamente, esta – chamemos-lhe, como o director gosta – transição tem como padrinho, Stuart de Carvalhais, homem de desenho libérrimo e nos mais diversos suportes, mas nado e criado nas páginas dos jornais. Ontem, à laia de manchete, um casal de anafados burgueses contemplava de um bote enorme navio que parece mais de guerra do que paquete. A mão no ar do homem pede legenda. E o mesmo acontece na que é oferecida em grande formato. Quem faz aqui a vez de pesada nave e ligeiro bote, o papel ou a rede? Ao contrário do que desejava, e julgando apenas por esta primeira edição que me suja os dedos, perdemos mundo, perdemos pé, com o abandono do papel.

Mymosa, Lisboa, 3 Julho

Volto-me para os regionais, que voaram e continuam a voar, tantas vezes abaixo do radar. Penso agora no «meu» Diário do Alentejo, que o Paulo [Barriga] faz vogar pelos mares alterosos do trigo com galhardia. Ou no surpreendente Jornal de Leiria, dirigido pelo João Nazário, para dar dois exemplos. À mesa do almoço, para qual não era servido este assunto, recebi da mão seu director, velho e querido amigo Ricardo [Salomão], o novíssimo Notícias da Gandaia, no qual e além do mais cronica a Luísa Costa Gomes. O Gandaia, que já pontuava online há muitos anos, a partir da Costa da Caparica para Almada, fez contas e percebeu que ganhar corpo de papel era forma barata de alargar a rede. Assenta tudo em trabalho associativo de primeira água, que assegura universidades populares, grupo de teatro, ciclos em torno dos livros e muito mais. O mar muda-nos todos os dias, dizem eles. A Luísa, cuja coluna se intitula «Nós e a Nossa Época», por coincidência, interroga-se sobre a estranha atracção dos jogos online: como usar o que vicia para nos agarrar aos poetas maneiristas ou a Astrofísica, «como aprender então a brincar com coisas sérias?»

Facebook, algures, 4 Julho

«A morte não te há-de matar», cantam os Sétima Legião, abrindo Glória. A dita poderá ter levado Ricardo Camacho, mas não o matou. «Há mil anos de memórias a contar», entoam ainda em Sete Mares, no qual celebram a força das marés contra as tormentas. Na pós-adolescência, nutria alguma desconfiança ideológica com a malta da Fundação Atlântica, sem que isso atrapalhasse o costumeiro voluntarismo de me atirar pelas janelas que abriram ao encontro do pós-punk, que o mesmo é dizer Durutti Column. A senhora da gadanha, e a sua auxiliar, melancolia, ajuda a descobrir o lastro que não somos obrigados a deixar para trás no caminho do envelhecer. Somos pó e aos pós (esta semana pop e punk) voltaremos.

Horta Seca, Lisboa, 6 Julho

O Carlos [Querido], na apresentação, topou um nexo entre o conto «Mestres Vivos ou A Lição do Silêncio» e este «Uma Mancha Chamada Berlim», que abre este terceiro volume de contos do Ricardo [Ben-Oliel]. O primeiro acrescenta uma geração a uma família que se apresenta o nó do mundo, tão dispersas as origens, recolhidas embora sob o tecto de uma mesma casa, uma tradição, bênção e maldição. Um filho que corre, um avô que se recolhe, entre ambos frutifica a árvore do narrador, que tanto oferece o fruto fresco da anedota como o sumo ácido da reflexão. Delicia-me esta escrita perdida entre línguas, como o narrador perdido entre pátrias, países, práticas em busca de identidade. Sinto o fôlego da respiração prestes a insuflar novela, noto o absurdo a espreitar nas frestas de monólogos e introitos, acompanho, por momentos, o autor a fazer-se. Ao caminho.

«Foi quando a morte se não conteve em ser dos outros só, e veio morar por detrás da porta. Quando deixou de avisar, de se anunciar, porque estava mesmo de chegada. Silente e firme. Invisível. Tão presente se tornara que as vozes se não ouviam. Um passo era bem um passo. Estalava o madeirame dos móveis. Ruminavam os canos nas entra­nhas da velha morada. Os relógios não tocavam já.

Em cada objecto da casa há um alguém que te fita, porque também contigo a morte está. A ramalhosa árvore que resiste lá fora contempla‑te à janela e solta‑te folhas em despedida.”

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