Entrevista MancheteDi Wang, investigador: “A China está num processo de substituição de uma cultura local para uma cultura nacional” Sofia Margarida Mota - 24 Jan 2018 Há 40 anos que se dedica ao estudo das sociedades secretas chinesas. A cultura, a comunicação, o papel que tiveram na sociedade e na política são áreas que, para o investigador Di Wang, são fundamentais para que se entenda a actualidade. Depois de mais de 20 anos nos Estados Unidos, Wang está desde 2015 na Universidade de Macau e já começou a recolher dados acerca da história das subculturas organizadas no território Como é que começou o seu interesse pelo estudo das sociedades secretas chinesas? Já há muito tempo. Na década de 1980 comecei a investigar este tema, o interesse foi crescendo e acabei por escrever um livro que reuniu a pesquisa de 30 anos. Era enorme com mais de 700 páginas. Mas tudo nasceu quando comecei a estar mais atento à sociedade chinesa, em especial durante a dinastia Qing. Foi quando as sociedades secretas começaram a aparecer e a ter força e desempenharam um grande papel no que respeitava ao controlo local. Por outro lado, são também entidades que têm uma grande riqueza cultural enquanto subcultura. Estes grupos de pessoas que começaram por existir em oposição ao governo Qing acabaram por ter uma dinâmica própria com características que até hoje perduram. Qual era o objectivo destas sociedades quando apareceram? Estando em oposição à dinastia Qing, os grupos secretos da altura queriam restabelecer a dinastia Ming. Eram sociedades formadas dentro do próprio povo. Sendo grupos secretos e de forma a se protegerem, estas sociedades acabaram por criar códigos culturais próprios que incluíam rituais e formas de comunicação apenas entendíveis entre eles. Também me tenho debruçado na pesquisa destes códigos e foi muito interessante conseguir perceber como é que os membros das sociedades se identificavam quando se encontravam, ou como se descobriam, tinham diálogos autênticos e faziam planos com uma linguagem absolutamente simbólica. Pode referir exemplos? Uma das formas de comunicação mais comum era com chávenas de chá. Havia um conjunto de formas de disposição das chávenas na mesa quando eram pousadas, que discretamente traduziam questões e respostas, que formavam diálogos silenciosos. Não precisavam de proferir uma única palavra para que tivessem uma conversação. Acredito que este tipo de rituais tinha uma ideologia política anti-governo. Tinham também os seus próprios poemas que reflectiam as suas ideologias, a história, a cultura enquanto serviam, ao mesmo tempo, de forma de comunicação. Existem várias sociedades secretas conhecidas. Estuda alguma em especial? Estudo uma sociedade da província de Sichuan, a Paoge. É uma fracção da conhecida Tiandihui que traduzido significa sociedade do céu e da terra. O que significa Paoge? Pao é referente ao traje que usavam, que seria uma espécie de grande túnica. Ge vem de irmão e remete para irmandade. É um nome metafórico pois não se vestiam assim, não tinham que usar este tipo de túnica mas era uma referência. Estamos a falar no passado. Estes grupos ainda existem? Acredito que as sociedade sociedades secretas, apesar de terem sido alvo de ataque pelo vários governos desde que apareceram e pela própria dinastia Qing, continuam, mesmo que sob outras formas, ou outros nomes, presentes. A Paoge é um bom exemplo e fala-se que foi exterminada a partir de 1949. Mas acredito que a sua cultura, a sua linguagem e rituais sobreviveram e que merecem ser preservados e conhecidos. Hoje em dia, na nossa linguagem diária há ainda palavras que eram usadas pelos Baoge e que são de uso diário. Por outro lado assistimos a uma espécie de retorno destas sociedades alguns anos depois da revolução cultural. Emergem das suas origens e que podemos constatar em Sichuan, Guandong, Fujian e em muitas outras províncias. Agora poderão estar a surgir com nomes diferentes mas têm as mesmas raízes. São grupos culturalmente regulados pelos rituais e tradições que existiam antes. É por isso que se queremos entender a sociedade de hoje temos de olhar para trás e perceber o que vem de há muito tempo. Mas mesmo que algumas destas organização já não existam da mesma forma que existiram no passado, as suas actividades, os seus rituais, a sua comunicação e os seus negócios sobrevivem. Consegue ter exemplos da actualidade? Se nos reportarmos a 2012 ao conhecido caso Bo Xilai. Um importante membro do Politburo que depois de um famoso discurso em Chongqin em que prometia acabar com as chamadas heise, sociedades negras, e também conhecidas por entidades de crime organizado, foi acusado de corrupção. Há várias teorias acerca do sucedido. É uma assunto muito complexo mas acredito que as sociedades secretas possam ter estado envolvidas na sua queda, as tais sociedades negras. Quando falamos das antigas sociedades secretas e das actuais entidades de crime organizado, estamos a falar da mesma coisa? Em Sichuan é quase de conhecimento comum a existência destas sociedades negras, e sim, são muitas vezes associados a criminosos. Hoje em dia são muito semelhantes. Todas elas têm diferentes princípios, uma história diferente mas a base é semelhante. Como é que estas grupos evoluíram, por exemplo, para as tríades? As tríades de Hong Kong tem na sua origem a antiga Tiandihui. Temos de perceber que estamos a falar pessoas ou de grupos marginais que eram alvo de combate por parte dos governos. Claro que tinham uma rede muito complexa de membros em que alguns tinham profissões legítimas e outros não. Por exemplo em Sichuan, os Paoge estavam divididos em duas categorias. Uma a que chamavam de água pura em que as pessoas que lhe pertenciam não estavam envolvidas em qualquer actividade criminosa. Tinham as suas profissões e podiam ser homens de negócios, senhorios, etc. e que se juntavam à irmandade à procura de protecção. A outra categoria chama-se água lamacenta. O próprio nome indica que é algo onde não se vê claramente. Este tipo de categoria da Paoge estava normalmente envolvida em actividades criminosas. Esta categorização apareceu depois do séc. XIX. Penso que a Paoge foi transformada com o tempo em entidade criminosa e com isso deixou de proteger o povo ou de o representar, o que estaria na sua origem, para o suprimir. Mas é importante perceber a sua cultura de génese ainda sobrevive. Por exemplo, um jornalista de Wall Street Journal entrevistou-me porque estava em Sichuan a entrevistar pessoas e ouvia sempre referências à Paoge. Parece que a população tem sempre uma conexão a esta entidade. Que poder têm estas entidades? Na década de 1940, por exemplo, os Paoge acabaram por se tornar a sociedade mais poderosa daquela região. Faziam parte dela pelo menos metade dos homens adultos da província. A mim custava-me crer que fosse possível. Mas tenho feito muita pesquisa este ano e entre arquivos e investigações reiteraram que são dados reais. Por outro lado, estes membros da Paoge conseguiram infiltrar-se em todo o lado. Entraram na política e mesmo no exército. Os membros do conselho de Qongqin eram, na sua maioria pertencentes à Paoge, até porque era a forma de serem eleitos. Acredito que em Sichuan há as chamadas sociedades negras e que estão muito presentes. Mas as entidades deste género acabam por estar em todo o lado e fazer parte das próprias mudanças históricas. Sun Yat Sen por exemplo seria membro de uma. Tem também feito alguma investigação na área da história das cidades. Como é que vê o desenvolvimento urbanístico na China e em Macau? As cidades chinesas estão a passar por mudanças dramáticas em que é destruído o passado. Em Macau constroem-se casinos mas não se elimina o centro histórico ou as comunidades mais antigas. No continente acaba-se com a história. Este aspecto está a transformar-se num grande problema no continente. Os bairros antigos, mesmo os de Pequim que são históricos, estão a ser destruídos, os conhecidos hutongs. As cidades na China estão a uniformizar-se e está-se a perder muito com isso. No passado, cada cidade tinha as sua características próprias, a sua cultura, a sua identidade, o seu dialecto, estilo de vida e paisagem. Hoje está tudo a ficar igual. Trata-se de um fenómeno actual? De acordo com a pesquisa que fiz, defendo que este processo de uniformização urbana teve início nos primeiros anos do séc. XX e começou a tornar-se uma tendência tanto da dinastia Qing, dos republicanos da república popular que tem vindo a agravar-se. Todos tinham a mesma tendência. A China está num processo de substituição de uma cultura local para uma cultura nacional. Esta chamada cultura nacional é a cultura motivada pelo Governo Central. Mas o modelo é o mesmo do aplicado pelos últimos anos da dinastia Qing, só que agora elevado a um extremo. Se olharmos para as cidade europeias ou mesmo do Japão e Macau, vemos que as comunidades e construções antigas ainda permanecem lá. Mas se formos agora ao continente, as cidades estão todas a ser reconstruídas. A diversidade na China é cada vez menos e o problema é tanto maior quando estamos a falar de culturas com pelo menos dois mil anos e que deveriam ser preservadas. Mas estamos num governo centralizado e ninguém se atreve a desafiar ou a tentar modificar estas políticas. Relativamente a Macau, tem alguma pesquisa acerca do território? Estou muito interessado em Macau. Estou na Universidade de Macau desde 2015 e estou a pensar estudar especialmente a vida cultural e do quotidiano. Mas já iniciei uma pesquisa acerca da história das sociedades secretas aqui.