Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDo Natal e da Paixão António Cabrita - 26 Dez 2017 19/12/17 [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]atal era o nome de um papagaio que à evocação dos três Reis Magos desatava a dizer palavrões numa catrefada de línguas e que o Al Berto conheceu numa taberna portuária em Antuérpia. Mostrou-me a anotação num caderno e uma fotografia do bicho, nessas duas semanas em que estivemos a filmar, na Quinta de Santa Catarina, em Sines, onde então vivia. Realizava o filme o Guilherme Ismael, um amigo que fiz na Escola de Cinema, dez anos mais velho do que eu e que estivera exilado com o Al Berto em Bruxelas. Aí haviam escrito a quatro mãos um delirante exercício narrativo em que cada um deles contava a sua versão da queda livre de um pára-quedista cujo dispositivo se revelou avariado. Na câmara e na produção estava o Costa e Silva e eu, que fazia o papel de um escritor mergulhado nos seus fantasmas, todas as noites, duplicando a coisa, martelava na máquina de escrever para continuar o guião e fixar o que iríamos filmar no dia seguinte. A intenção era anti-naturalista, com cenários pintados em telões pela pintora Lourdes Sendas. Pouco me recordo do relato – eu estava fechado no casarão a escrever uma novela e havia um segundo plano da narrativa em que os personagens da história que eu tecia regressavam de muito longe para me matar: um parricídio do autor. O Al Berto de vez em quando aparecia nos espelhos como um espírito da casa. Tinha-me alcunhado como o “De Niro das Torcatas” (o meu bairro de nascença). Mas levávamos tudo muito a peito e estivemos uns doze dias fechados no casarão a filmar aquela média-metragem. O Guilherme trabalhou dois meses na montagem do filme no Centro Português de Cinema e lá depositou as latas quando foi chamado para trabalhar na BBC. Faltava unicamente acrescentar dez minutos de música à banda sonora – de resto a fita, com 50 m, estava pronta e seria um ovni no panorama do cinema português dessa altura. Numa mistura ousada de Straub e Syberberg e Duras (- isto, ó há ambição ou não há!), tremo só de pensar no que de tal amálgama resultaria. Quando ele regressou no ano seguinte, para passar o Natal e gozar as suas férias e acabar o filme, deu conta que os seus colegas cineastas, num gesto canalha, tinham aberto as latas e usado a película como pontas de montagem. Nunca ouvi o Guilherme, que era negro, acusar a atitude dos colegas como um gesto de racismo, mas visto à distância era bastante plausível. E a brincadeira começou de certeza como um comentário irónico ao título que tínhamos dado ao filme: “Para demolição!”. Foi um dos meus piores Natais, recordo eu agora, deste meu Natal a 33 graus. 21/12/2017 Mesmo quando o homem se encontra num estado de não-dualidade, num estado de enosis (de fusão entre o sujeito e o objecto), a contemplação da Verdade, impossível de alcançar discursivamente segundo o místico Angelus Silesius, só se produz por contágio: «Deus habita uma luz a que nenhuma estrada conduz; quem não se converte em luz, não o vê em toda a eternidade». O que o poeta Holderlin corroborou ao escrever: «crêem no divino/ só aqueles que o são». Vêm-me estas notas ao ler o magnífico A Dança de Shiva/ Ensaios sobre arte e cultura índia, de Ananda K. Coomaraswamy, sobretudo o terceiro capítulo: A beleza é um estado. Para quem vive como eu numa cidade moderna e decadente, uma cidade cariada, em que a especulação imobiliário se sobrepõe a qualquer idealizada harmonia urbanística, onde não existe o que seja uma sensibilização para ou que eduque pela arte, em que apesar de enxamearem os artistas se carece de qualquer prática crítica, campeando por isso o relativismo mais básico e ignorante; uma cidade em que os livros produzidos são maioritariamente feios, os museus escassos e a memória não se cultiva – sou impelido a transmitir aos alunos um vislumbre do legado da beleza na arte, quer promovendo discussões sobre esta categoria na arte e os seus modos de manifestação e de mutação histórica (até à sua periferização no último século), quer como pretexto para os iniciar ao Gosto e ao temperamento estético. Neste contexto, este livro funciona como um refrigério. Apesar de associar a arte ao sagrado, na Índia, os livros sagrados são só a sua expressão temporal e a escuta do que foi revelado depende da sensibilidade do ouvinte e da sua circunstância, pelo que ao contrário do que esperaria, Coomaraswamy não sustenta uma concepção essencialista da arte e do belo –– embora admita que «a beleza está por todas as partes, esperando ser descoberta, ser recolectada pela nossa memória (no sentido sufi e no de Wordsworth): pela contemplação estética, como no amor e no conhecimento, recuperamos momentaneamente a unidade do nosso ser, libertando-nos de nossa própria identidade». Portanto, para ele, a beleza (uma das três manifestações do sagrado) é um estado que nos reconduz ao indivisível, resultando mais do que “fazemos de” uma obra de arte do que de uma qualidade patente no objecto. A verdadeira beleza não reside simplesmente no que é objectivamente dado como beleza, sendo antes como um perfume a que só acede quem o percepciona. A beleza advém mas depende da interacção de quem a observa. E a ser assim não se esgota a sua pertinência como categoria estética, ao contrário do que tem sido alvitrado. É um estado de existência. Outra questão, aí sim central, é a tipificação de simulacros do Belo em formas degeneradas como acontece no Kitsch e se desencadeia na paródia. Entretanto, já o Leonardo defendia que uma figura (na pintura) é tanto mais digna de admiração quanto melhor expresse, mediante a sua acção, a paixão que a anima. Apenas a paixão nos refresca um estado de presença – a tal “embriaguez” que Nietzsche reivindicava para o impulso artístico. Seja na Arte, seja na Beleza, seja na Política: a paixão volta a ser necessária.