Justiça | Declarações trazem fantasma da erosão da influência portuguesa

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] vice-director do Gabinete de Ligação do Governo Central, Chen Sixi, proferiu declarações vagas sobre a revisão legal que Macau tem de fazer para se adequar à realidade trazida pela transferência e desenvolvimento rápido do território. Outra das questões que marca a erosão da influência lusa na justiça prende-se com, cada vez menos, existirem juízes portugueses nos tribunais de Macau.

Após o discurso da secretária Sónia Chan na abertura da conferência académica internacional sobre direito processual civil de Macau, subiu ao palco o vice-director do Gabinete de Ligação do Governo Popular Central na RAEM. Chen Sixi começou por referir a necessidade de “impulsionar a unificação da China”, à luz da “nova Era de socialismo chinês” saído do 19º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês.

A discursar perante uma plateia de juristas e académicos, Chen Sixi fez questão de vincar o compromisso com o “cumprimento rigoroso da Constituição e Lei Básica de Hong Kong e Macau”, assim como empenho em assegurar a estabilidade das duas regiões administrativas especiais. De seguida, o vice-director do Gabinete de Ligação referiu as fortes ligações entre a lei portuguesa e a legislação local, adiantando que “depois da transferência houve um grande desenvolvimento” que implica a necessidade de “rever a lei para a adequar à nova realidade”.

Jorge Neto Valente, presidente da Associação dos Advogados de Macau, entende que o “19º Congresso abriu uma nova Era que implica mudanças para a construção dos grandes objectivos definidos”. Quando interrogado sobre como interpretou as palavras do vice-director do Gabinete de Ligação, Neto Valente diz que “é preciso saber do que se está a falar”.

O advogado revela que ainda não conhece as alterações previstas para os códigos processuais, neste momento em fase de estudo, mas que “para alterar um código com a relevância de um código de processo civil é preciso saber-se muito de Direito, não é algo que se faça em duas penadas”.

Fazer alterações profundas num código que regula todas as fases processuais requer uma “evolução lenta”. Neto Valente dá o exemplo de algumas regras que “hoje existem no Código Civil que têm centenas de anos de sedimentação”.

Matriz lusa

O ordenamento jurídico de Macau foi fortemente influenciado pelo direito português. Por exemplo, o Código de Processo Penal foi elaborado por Figueiredo Dias, uma solenidade jurídica em Portugal.

Pedro Leal, que exerce advocacia em Macau há 30 anos, é da opinião de que o vice-director do Gabinete de Ligação “deu uma no cravo e outra na ferradura”, algo que entende como muito típico na cultura chinesa.

No entanto, o causídico não espera grandes alterações nos códigos de processo penal, principalmente que cortem a matriz portuguesa do direito local. “Se a ideia é cortar e ser um direito de matriz chinesa, isso vai demorar muitos anos. Algo que só é possível se for feito de uma forma gradual”, comenta.

Um dos aspectos onde Pedro Leal vê o desaparecimento da influência lusa é na substituição de juízes portugueses que saem do território e que são substituídos por magistrados mais inexperientes e formados localmente. “Havia uma boa dezena de juízes portugueses e deixou de haver, por alguma razão será”, recorda.

O advogado entende que “há uma espécie de um complexo de inferioridade de quem manda em Macau que não quer, pura e simplesmente, que venham juízes ou magistrados portugueses”. Como se formam juízes no território, a necessidade de “importar” magistrados de Portugal não se coloca nas mais altas esferas judiciais.

Outro problema fundamental prende-se com a morosidade e dificuldade de formar juízes. O processo é longo e é necessário ganhar calo para melhor administrar a justiça. Além disso, quando um magistrado português abandona o território, ou a profissão, a sua substituição não é imediata. Um episódio que aconteceu recentemente, quando uma magistrada portuguesa saiu do território sendo substituída quatro meses depois ilustra bem a situação. Ou seja, durante esse período os processos desse juízo estiveram parado, uma situação que revela clara falta de recursos humanos.

Velha história

António Katchi foi um dos juristas que testemunhou os primeiros dias de RAEM. “Lembro-me bem de, já nessa altura, diferentes personalidades, incluindo deputados, afirmarem que a legislação de Macau era obsoleta e que era necessário proceder a uma ampla e profunda revisão”, recorda.

O advogado evoca os tempos em que a pasta da Administração e Justiça estava nas mãos de Florinda Chan, quando se “chegou a elaborar planos de reforma legislativa que mais pareciam planos de produção de uma fábrica”.

Um dos fios condutores desses projectos, que não chegaram a ver a luz do dia, era a desconsideração perante o facto de que “grande parte dos diplomas legais de Macau datava de finais dos anos 1990 e havia passado pelo crivo do Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês”.

António Katchi entende que o ramo que escapou ao processo de actualização nessa altura foi o direito do trabalho. “Nesse domínio, a oligarquia de Macau e a casta dirigente do Partido Comunista Chinês nunca quiseram que se mexesse, a não ser para degradar ainda mais a posição jurídica do trabalhador”, teoriza o jurista.

O facto é que uma alteração tão significativa no ordenamento jurídico local constituiria uma violação da Declaração Conjunta Luso-Chinesa, algo que realizado unilateralmente seria um atropelo ao direito internacional, uma vez que a China se comprometeu a manter inalteráveis as leis fundamentais e o sistema jurídico de Macau até Dezembro de 2049. Neste contexto, António Katchi entende que “as palavras de Chen Sixi correspondem a uma velha ladainha que só ganharão algum interesse se, e quando, vierem a adquirir um conteúdo mais definido”.

Uma coisa é certa: qualquer interferência mexe com os elementos identificadores do sistema legal de Macau. O direito de todos os países e regiões onde houve administração lusa, como por exemplo Cabo Verde, Angola, Moçambique, Guiné e Macau, são de matriz portuguesa. Jorge Neto Valente entende que assim terá de continuar a ser em Macau, “sob pena de se destruir e perder a identidade” do ordenamento local.

Bom partido

A China não tem uma separação de poderes nítida, confluindo tudo na unidade partidária. Por exemplo, um sector do Partido Comunista Chinês tem o poder para interpretar leis, tal como faria um Tribunal Constitucional.

Por cá, aquando das divergências interpretativas quanto à Lei de Terras, o Comité Permanente da Assembleia Nacional Popular pronunciou-se sobre a matéria concluindo que o diploma legal não infringia a Lei Básica. O caso ganha outros contornos políticos tendo em conta que quem deu a notícia foi Ho Iat Seng. À altura, o presidente da Assembleia Legislativa argumentou que o projecto da Grande Baía Guangdong–Hong Kong–Macau era uma oportunidade demasiado apetecível para o território e que deveria ser prioritária face a questões de natureza jurídica.

Independentemente do crescimento do primeiro sistema, ou da falta de juízes portugueses a decidir em Macau, há uma vontade conjunta entre juristas e a secretária para a Administração e Justiça: a simplificação do processo judicial.

Essa é uma das prioridades da reforma legal, de acordo com Sónia Chan, de modo a elevar a eficiência processual e a elevar a protecção dos direitos e interesses de quem busca justiça nos tribunais.

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