Corpos celestes

Horta Seca, Lisboa, 20 Outubro

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hega no último minuto, enfunado de mares e acordes, de ventos e carnes e bravezas e terra, este «Rua Antes do Céu», do José Luiz [Tavares]. Por continuar celebrando os cinquenta, desdobra-os para regalo de quem se dê ao esforço de andar descalço nas pedras de quase tantos poemas quantos anos de (muita) vida: «entre as sombras do recreio/ és tu que desces pelo meio/ de um mês de sol cheio// e como tudo o que nomeio/ vens de noites caladas/ duma solidão/ inda mais entranhada/ que ensina/ ao seco som da pancada// que morres porque vivo/ somes porque verme/ no meio das pedras/ que te sabem indemne// desamigado dos pasmos/ que sempre foram/ uma comprida conta/ no rosário da infância». Embrenhamo-nos no território do imponderável, guiados pelo metálico da voz que esculpe, como nenhuma outra, a golpes de navalha na carne da nossa língua materna.

Sabendo da relação do autor com a fotografia, chamámos à capa uma chapa do Flávio Andrade (que ilustra esta crónica), e que sinaliza bem as múltiplas sombras e direcções deste andamento. A estrada feita lugar-comum, mas ninguém por ela passa da mesma maneira. Toca-me mais fundo por ser esta a nossa primeira co-edição, disparada, com a Rosa de Porcelana, na direcção de Cabo Verde celeste. «Boa viáji!»

Escola de Mulheres, Clube Estefânia, Lisboa, 20 Outubro

Dia gordo, este, que acaba sob o signo da perturbação. Em vale desaguando no escuro, as cadeiras desenhavam as colinas que predispunham os corpos para experimentar o rio que aconteceu ali em baixo, mesmo à frente dos nossos olhos. O Nuno Moura respigou restos de vida a dois, amorosa, afectiva, conjugal, matrimonial. A Marta [Lapa] não procurou narrativa, antes deslaçou ainda mais as palavras, deu ao texto tratos de laboratório e dele extraiu, com a participação dos actores Margarida Cardeal e Vitor Alves da Silva, uma segunda voz para o fio musical do Pedro [Moura]. O combate virou dança. Ou terá sido o inverso. Passei dias mergulhado em pintura, talvez abstracta, homem e mulher a desdobrarem-se em músculo e suor, carne e espírito, consentimento e aversão, entrega e desapego, fuga e comunhão, relâmpago e monotonia. Leves e soltos, por instantes, para logo se fazerem de chumbo. Líquido, por força da temperatura, regressando à forma dos corpos, por via da palavra. Uma intensidade minimal de grande risco, onde cada peça de marcenaria encaixou, da luz ao trabalho dos actores, da orquestração das figuras à melodia. Há muito que não saía de um espectáculo* assim, desorientado, sem saber bem o que pensar. (*Escreveria experiência, se a palavra não tivesse sido roubada pelo marquetingue). Ainda não sei bem se gostei, mas isso interessa? Ah, tinha por título, de que desgostei, «AAC – Associação Amizade no Casamento». Sou homem casado, sei da amizade no casamento. Aprecio bastante o risco, como à mesa com ele.

Praça da Criatividade, Óbidos, 22 Outubro

No meio do desarranjo destes meses, contribuímos para a baderna do Folio com umas «rapidinhas», que as circunstâncias foram reduzindo a mínimos, mas cujo modelo gostaria de aprofundar: intervenções de 15 minutos, nas quais os autores, ou alguém por eles, se atrevem a extrair tema de um livro. E metidas a martelo na programação. Foi um ensaio, mas há que insistir em desenrascar outras formas de festivalar. Folia, mas melancólica, aconteceu na subida ao palco dos «Tomara Tu Ter uma Tia Assim (TTTTa)» para cantarmos loas ao desvario dos corpos. Sem copos, por razões que se não explicam.

Horta Seca, Lisboa, 23 Outubro

Desde sexta que, a cada pausa arrancada a ferros, me atiro a «Cento e Onze Discos Portugueses – A Música na Rádio Pública Portuguesa» (ed. Afrontamento/RTP/Antena 3/Cultura FNAC). Com coordenação do Henrique Amaro e do Jorge Guerra e Paz, a lista começa em 1936, com duas marchas de Beatriz Costa, para marcar o início da Rádio Pública, e segue até Capitão Fausto Tem Os Dias Contados, do ano passado. Estrutura e desenho simples, mas apetecível: capa do disco, comentário ao lado, ficha técnica, conjunto devidamente acompanhado por cronologia, pequenos textos de enquadramento e índices. Que mais precisamos para o deleite? Da rede, além da rádio. As listas possuem uma dinâmica curiosa: exigem logo opinião, artistas que faltam, trabalhos que podiam ser outros, discussão de critérios, etecetera. Nenhuma será perfeita, mas esta apresenta-se de talhe bem equilibrado, nos gostos, estilos, épocas e formatos. Oferece matéria para desilusões, que o afecto adolescente não é dos melhores críticos. Há rugas, claro, mas serão de expressão. Podemos ler as capas só por si, a ver se o que sobrou ainda diz bem ontem ou se desfez em nada. Mas serve sobretudo para revisitações e até descobertas. Diz-me ao ouvido que ter a minha idade pode ser consolo. Quando não estava distraído, assisti a uma série de pequenas e médias revoluções. A de Zeca e Sérgio e Zé Mário e Paredes e Fausto, a dos Telectu, Mler If Dada, Variações, Pop Del Arte, a dos Mão Morta ou Palma, a de Camané e dos Ornato Violeta. E por aí fora, em altas rotações, até à enorme riqueza deste presente pobre.

Horta Seca, Lisboa, 24 Outubro

«Contemplação Particular». Depois das desafiantes pinturas, que transcendiam o corpo, que o elevavam na sua mais pura materialidade, em abstracta dança de formas carnais, expostas depois em «Delubro», espaço do sagrado que parava o tempo ali para os lados do Centro Cultural de Belém, eis o livro, a tornar portátil o experimento. O António [Gonçalves] fecha com a inteireza da madeira (carvalho?) este seu deslumbrante e desafiante projecto, ignorado pela crítica. Aliás, que bem se cruzaria a peça da Marta com as telas do António! São da mesma massa, do mesmo risco: traço e navalhada. Por isso me irrita sobremaneira esta indigente falta de curiosidade. Serão cometas, mas podemos dar-nos ao luxo de ignorarmos a sua passagem por nós? Fecho parêntesis. Este objecto, ao menos, continuará a dizer do erotismo muito para além da inevitável morte, essa irmã chegada. Não será de igual modo, apesar de se estender a álbum, que a pintura se vê com o corpo todo, mas permite aproximações. E atira muita lenha para o desejo, com dvd e tudo. Tudo, que nasceu da leitura corpo-a-corpo de Flaubert e Bataille.

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