PolíticaDOC 2017, O mundo quase todo em Lisboa Rui Filipe Torres - 23 Out 201724 Out 2017 Purge This Land – Lee Anne Schmitt – 2017, EUA, 80’ [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e 19 a 29 de Outubro, as salas do magnífico S. Jorge na Av. Da Liberdade, da Cinemateca Portuguesa na Rua Barata Salgueiro, Auditórios no edifício sede da Caixa Geral de Depósitos na rua do Arco Cego, e/ou do cinema Ideal na rua do Loreto ( largo do Camões), iluminadas pela luz reflectida no grande ecrã, transportam o muito público a revelações, partilhas, a representações do mundo conhecido, pressentido, inesperado, à experiência imersiva do cinema partilhado em sala escura. Mais significante do que uma enumeração quantitativa para uma aproximação a esta edição, são as palavras dos directores Cíntia Gil e Davide Oberto , dizem eles: “A motivação mais profunda para programar filmes nasce de uma certa curiosidade, mesmo fascinação pelo que os filmes nos podem fazer. Encontrar um estranho corpo, poroso e instável, que esteja entre o que os filmes são, o que somos capazes de receber deles, e o que eles nos fazem ver e sentir quanto às vidas que vivemos e ao mundo que habitamos. Se o cinema pode ser útil, é apenas na medida em que, com os filmes, as coisas aparecem com novas cargas de sentidos que nos permitem enfrentá-las com um pouco mais de coragem, de fé ou de amor. O cinema do real só o é na medida em que os filmes nos ligam às coisas – independentemente dos métodos utilizados para tal. É-o na medida em que o real é partilhado enquanto virtualidade, fantasma e matéria, conjunto ilimitado de imagens que nos devolvem à nossa finitude. Decidimos abrir com Ramiro, de Manuel Mozos, e encerrar com Era uma vez Brasília, de Adirley Queirós. Da comédia popular ao filme performático, abrimos e fechamos com dois filmes que desafiam e abrem a programação do festival, sugerindo caminhos e leituras possíveis do todo da programação. Programar este festival é para nós muito longínquo de trabalhar na eficácia, no paternalismo e no esquematismo a que a ordenação fácil dos filmes por géneros nos habituou. Os festivais não servem para confirmar as categorias em que os filmes são encaixados, mas para as inquietar e revolver. Os festivais não canonizam nem idolatram, não organizam nem explicam, antes questionam, provocam, põem lado a lado e frente a frente os filmes uns com os outros e as pessoas com os filmes. As retrospectivas são de certa forma experiências dessa espécie de filia que nasce nos e com os filmes.” https://www.youtube.com/watch?v=cVE2LeVL8-w Vera Chytilová É a cineasta a que é consagrada uma das retrospectivas nesta edição. Figura central da Nova Vaga Checa, foi a mais radical do movimento. Os seus filmes são abordagens cheias de ironia e ruptura com os códigos de representação vigentes no realismo social. Mulher lutadora e obstinada, criou uma obra provocadora e plena de atenção aos detalhes dos humanos, aos pequenos gestos, aos pequenos assuntos, trazendo-os para o lado das questões aparentemente maiores da ordem política, do trabalho, do feminismo. Outros festivais a reconheceram, Veneza, Oberhausen, Moscovo, Chicago. Foi condecorada com a medalha de mérito da República Checa e da ordem das Artes e Letras do governo francês. Em 2017 o doc. Lisboa dá a ver o seu cinema numa extensa retrospectiva. https://youtu.be/E4VAXMUsTS8 Uma outra América – O singular cinema do Quebec É assim titulada a retrospectiva do cinema que me muito é resultado das políticas do National Filme Board, entre 1960 e 1970. Boris Nelepo acompanhar-nos-á na descoberta desta filmografia. Em parceria com a Cinemateca Portuguesa, traz um conjunto de cinco filmes que nascem de encontros entre cineastas, em que cada filme parece trazer uma pulsão de vida ou morte – como em La Bête Lumineuse, de Pierre Perrault, em que a poesia convive com a dor, a violência, o confronto entre almas. O ‘Velho Mundo’ e o ‘Novo Mundo’ surgem nestas duas viagens, ajudando-nos a ver melhor de onde vimos e de onde vêm as nossas interrogações contemporâneas. “Nas competições, entre a total diversidade de formas, temáticas, linguagens, países, todos os filmes são gestos de intensidade afirmativa, procurando a justeza sem fazer justiça, experimentando de forma comprometida o universo que se propuseram, inventando para si e para nós o desejo de cinema. É também esse movimento que anima os filmes mostrados na secção Verdes Anos – um espaço em que, mais do que apresentar novos realizadores, queremos reconhecer a importância e a seriedade dos primeiros filmes e gestos. A secção Passagens foi este ano desenhada por Pedro Lapa, num diálogo com a equipa do Museu Berardo, tem como convidada Sharon Lockhart, que trabalha entre a fotografia, o filme, a instalação, convocando permanentemente os laços afectivos que vamos criando nas situações do quotidiano.” Heart Beat – Grace Jones: Bloodlight and Bami – 2017, Irlanda, Reino Unido, 120’ A enorme sala Manuel de Oliveira estava esgotada. O bilhete foi comprado fora da bilheteira, como nos grandes jogos de futebol, felizmente sem acréscimo ao custo na bilheteira. É sempre magnifico esta grande sala cheia de gente à procura de novos encontros com a vida no ecrã. Para mim é uma sala especial, recebi aqui a minha única medalha por ser um aluno a distinguir, e ainda hoje não sei se foi porque nesse dia foi à escola ( estava no 1º ano do ciclo preparatório na Francisco de Arruda – Alto de Stº Amaro) , e faltava alguém a quem medalhar, ou se lá estive porque me tinham convocado, nesse tempo tudo era novo e estava sempre em descoberta e aproximação, mas aconteceu ou seja, a tal medalha que não sei onde se perdeu e vinha numa encadernação dos Lusíadas, foi para mim. Também foi neste S. Jorge, que programei o 1º Festival Internacional de Cinema Chinês e Lusófono , que se tornou edição única, mas que serviu para que outros avançassem, com novo festival nesta relevante direção. A luz da sala desce, e Grace Jones surge no ecrã, como a recordava, de quando no final do séc. XX a ouvia e dançava nas noites quentes e eróticas de Lisboa a testar a sua movida, ao lado da de “ Madrid Me Mata”. Com ela o filme leva-nos à Jamaica, uma Jamaica de verdade, longe do marketing turístico. É à sua à família com origem étnica Africana, onde nasceu, que chegamos. Uma família onde matriarcado, patriarcado, amor, submissão, religião, tem especificidades concretas cozidas a sangue, a amores ilícitos e vínculos que ultrapassam a espuma e o efémero dos dias. É um filme com uma verdade que nos questiona sobre as configurações da dominação e o lugar sempre inesperado da emancipação. Grace Jones, é esse lugar, um corpo território poderosamente habitado pela memória afectiva e pela rebeldia lugar de emancipação. Um corpo performativo poderoso, uma voz, um som, que enche um palco, incendia a noite. Selvagem e andrógina – Grace Jones, dá-se a ver também como amante, filha, mãe, irmã e até avó, sujeita-se sem defesas ao nosso olhar e permite compreender de que é feita , a tecida a amor, dor, e prazer, a sua máscara. https://www.youtube.com/watch?v=Vyo55F44bU4