Celebração dos 150 anos de Camilo Pessanha aviva uma memória adormecida

Depois de um século e meio do nascimento de Camilo Pessanha, Macau recebe uma série de eventos para assinalar a data do maior poeta em língua portuguesa do território. Após um longo período de relativo esquecimento, o autor volta a ser comemorado com uma série de eventos entre 1 e 7 de Setembro no Antigo Tribunal

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omeça hoje uma semana dedicada ao mais alto vulto da literatura em Macau com poesia, conferências, livros e exposições no Antigo Tribunal.

“O Pessanha faz parte da identidade de Macau, não é apenas um vulto na literatura portuguesa, mas é um autor que tem muito a ver com Macau”. Quem o diz é Miguel de Senna Fernandes. O advogado, assim como muitos dos leitores do poeta, reconhece a universalidade de Camilo Pessanha mas destaca as influências que a cidade teve na obra do autor.

O escritor é um vulto omnipresente no imaginário literário de Macau, assim como a cidade onde escolheu viver é uma referência incontornável na sua obra.

“Tirando o facto de ser um grande poeta português, que escolheu Macau como sítio para viver, a sua obra reflecte as influências do tempo que aqui esteve”, refere Amélia António. A presidente da Casa de Portugal acrescenta que o poeta “é património de Macau, da língua portuguesa e conjuga-se na sua pessoa todas estas facetas que espelham a presença cultural portuguesa em Macau”.

A advogada enaltece a série de eventos que se iniciam hoje, “um tipo de trabalho que tem faltado em Macau”, apesar das esporádicas traduções que se vão fazendo da obra do poeta.

Amélia António destaca que não foi feito um trabalho sistemático de divulgação e estudo, ao longo dos anos, de forma a manter a memória e a obra de Camilo Pessanha presente em Macau. No entanto, destaca que esta falta de preservação não é exclusiva da RAEM, é uma negligência que vem de trás e que, além disso é recíproca. “A maioria dos portugueses também ignora a literatura e a poesia chinesa, nomeadamente a que é produzida em Macau. As traduções não abundam e também muita da literatura em chinês já não se foca em Macau”, explica a presidente da Casa de Portugal. Amélia António entende que a literatura é uma forma de ligar comunidades, um instrumento que permite aprofundar conhecimentos e apreciações mútuas.

Esquecimento centenário

Durante os últimos tempos a comunidade macaense tem-se afastado da cultura e língua portuguesa, com muitos jovens a preferirem aprender mandarim. “A comunidade macaense anda muito dispersa e um pouco desligada na sua relação com a cultura de Portugal, anda um pouco desfasada”, revela Miguel de Senna Fernandes.

É algo que escapa ao entendimento do presidente da Associação dos Macaenses e que lamenta uma vez que entende que “Camilo Pessanha é um dos nossos poetas, faz parte do património cultural de Macau”.

Amélia António alarga este esquecimento a um espectro mais global no território. “Acho que a memória de Camilo Pessanha não é nem bem, nem mal, tratada por cá. Simplesmente não tem sido tratada, não tem sido devidamente valorizada”, comenta. A presidente da Casa de Portugal entende que, como grande poeta local que foi, “Macau devia honrá-lo e devia ser feito tudo para tornar a sua obra mais conhecida”.

Outra das lacunas em termos de valorização e difusão encontra-se entre a comunidade chinesa, que tem pouco contacto com a obra do poeta.

“No fundo, Macau tem não tem dado atenção aos aspectos culturais. Não é uma doença nova, sem ela, certamente, hoje existiria um número diferente de pessoas com conhecimento de literatura, a apreciar, a dar valor e a defender esse património”, considera Amélia António.

Antes de recriminar quem quer que seja, temos de nos recriminar a nós próprios por aquilo que não se fez ao longo destes séculos.

Miguel de Senna Fernandes recorda o momento em que se debateu a possível trasladação dos restos mortais de Camilo Pessanha para Portugal e a forma como o Instituto Cultural se opôs. Mas acrescenta que se poderia fazer muito mais. Neste aspecto, é de salientar que a própria campa do poeta não tem qualquer destaque no cemitério onde está sepultado.

Até hoje, a memória e obra de Camilo Pessanha tem ficado encerrada num pequeno ciclo intelectual. “Só o interesse de um estudioso, ou de um apaixonado, pela literatura, origina uma tradução, ou algo do género. É preciso contornar esta circunstância e dar conhecimento da sua obra ao maior número de pessoas possível”, projecta Amélia António.

 

“Uma cidade de cultura”

Fazemos frequentemente apelo à importância e ao conhecimento da História como discurso que, ao representar a realidade de determinados tempos e espaços, nos apoia na construção de uma memória como Povo e como Comunidade em relação permanente com outras comunidades. Num outro registo, não é menos significativo ou importante o conhecimento da Literatura, igualmente como discurso produzido no tempo e no espaço, que nos interpela, nos projecta e nos convoca para a reflexão e para a fruição. De ambos os discursos se faz a cultura de um povo.

A grande relevância das comemorações dos 150 anos sobre o nascimento de Camilo Pessanha que, em boa hora, sob o impulso de Carlos Morais José, um conjunto de pessoas e instituições – entre as quais este Consulado-Geral – tornou realidade aqui em Macau, associa-se a estes dois aspectos.

Não se trata apenas de trazer para os dias de hoje a obra de um poeta português que constitui uma referência na sua geração e no seu tempo e de eventualmente reflectir sobre como, sendo intemporal, se poderá fomentar a sua divulgação e o seu maior conhecimento. Trata-se, também, de evocar um tempo na história de Macau e de a afirmar também como uma cidade de cultura, no passado como no presente.

Expresso, por isso, a minha satisfação por estas comemorações e faço votos para que estes dois propósitos possam delas sair reforçados.

Vítor Sereno, cônsul-geral de Portugal em Macau e Hong Kong
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