O Primo Basílio de Eça de Queirós – Luísa e Juliana (primeira parte)

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omeçamos hoje, e durante quatro semanas, a análise de dois conceitos chave em O Primo Basílio de Eça de Queirós: superação de si, na esteira da fenomenologia de Hegel, e de modo a mostrar a complexa relação entre Luísa e Juliana; e vício, de modo a mostrar o nervo central deste romance.

Assim, o conceito que aqui nos importa aprender inicialmente, com Hegel, é o de consciência de si. Foi Hegel que mostrou ao mundo o que é apreender uma coisa ou, se preferirmos usar a linguagem de Hegel, percebê-la. Não se pretende aqui um curso sobre a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, e muito menos sobre Hegel; não tratamos aqui de Hegel com autoridade filosófica, apenas lhe pedimos ajuda para melhor entender o que se passa em O Primo Basílio de Eça de Queirós. Para tal, para que Hegel nos possa ajudar, é preciso ouvi-lo e para ouvi-lo há que entende-lo minimamente. É este minimamente que se pretende mostrar aqui. Não vamos reduzir Hegel, mas circunscrever o que dele precisamos para a nossa tarefa hermenêutica. Apreender ou perceber o que quer que seja é negá-lo. Que quer dizer então “negar”? Negar é ter o que se quer em nós. Esse ou isso que se quer, ao ser em nós passa a ser a negação do que era: passa de sujeito a objecto. A passagem de sujeito a objecto é a negação. Negar é transformar um sujeito em objecto. Avancemos com um exemplo. Deus, sujeito de tudo e de todas coisas, passa a objecto a partir do momento em que o penso, a partir do momento em que me aproprio dele. Apropriar-se de Deus não é ser Deus, mas negá-lo, transformá-lo em objecto. Negar Deus não é dizer que não acredito em Deus, mas fazer dele um objecto: um objecto de consciência. Quando Deus entra em mim, se consciencializa em mim, passa a ser objecto. Objecto da minha consciência, objecto da minha subjectividade, objecto do meu sujeito (do meu Eu, diria Hegel). Por maioria de razão, o que é válido para Deus é válido para todos e todas as coisas. Ao caminharem na rua, se acaso se lembrarem destas minhas palavras, deste artigo, transformam-me em um objecto vosso. Objecto da vossa subjectividade, da vossa consciência e, no entanto, eu agora aqui a escrever sou um sujeito. Mais: serei ainda um sujeito mesmo que não me há transformem em objecto. Podem perguntar-me: então para quê negá-lo? Ter consciência do que quer que seja é negar isso mesmo que se consciencializa ou de que se toma consciência. Ou seja, sem negar não se pode ter em nós um objecto de consciência, não se pode ter nada em nós mesmos, é isso que está aqui em causa. Para se ter consciência de uma coisa é preciso começar a negá-la. Para ser mais exacto, nem devo dizer “é preciso”, pois isso pressupõe que depende de mim, da minha vontade. Não, tomar consciência é independente da minha vontade. Permanecer naquilo que consciencializo é que já depende da minha vontade. Assim, o que se torna consciente em mim é, em mim, a negação daquilo que é fora de mim. Usando a linguagem de Hegel, na sua assombrosa Fenomenologia do Espírito, o outro passa a estar em mim. O outro em mim é a negação do outro. Uma negação do outro é, em mim, a consciência do outro. Mas a negação é dupla. A negação não é somente negação do objecto, negação do outro. A negação também nega o sujeito da negação, isto é, ao negar estou também a negar-me. Ao negar Deus, ao se tornar consciente em mim, nego-me também a mim, pois transformo-me no objecto que nego. Deixo-me, deixo de estar em mim para estar em Deus. A consciência de Deus, em mim, nega-me, torna-me objecto de mim mesmo, torna-me um outro de mim mesmo. Imaginai que pensais em Hegel – apesar de tudo, ainda é mais fácil pensar em Hegel do que em Deus, pouco mais fácil, mas ainda assim, mais fácil –, ao pensardes em Hegel estais concentrados, focalizados nele, Hegel, isto é, vós estais fora de vós mesmos, estais , fora de vós, em Hegel. Mas este fora de vós não acontece senão em vós mesmos. Ou seja, vós tornai-vos um outro para vós, tornai-vos a vossa própria negação. Aqui, não se trata da negação do objecto, mas da negação do sujeito. Por conseguinte, parece mais do que evidente que sem negação não há consciência do que quer que seja, não há conhecimento. Pois somente apreendo, somente conheço o que quer que seja se me con-centrar, se me con-centro naquilo que quero apreender. A língua portuguesa aqui, com a ajuda do latim, é feliz e ela mesmo diz o que eu estou a dizer. Concentrar é centrar com. Isto é, eu centrado em alguma coisa. Eu centrado em alguma coisa é a negação do eu, a negação do sujeito. Eu concentrado sou eu negado. Podeis perguntar: “e se você estivesse concentrado em si mesmo, concentrado em você, pensando em você, já não se negava, pois não?” Errado. Eu concentrado em mim mesmo sou eu negado enquanto objecto, isto é, eu negado na primeira forma de negação que apresentei aqui. Pois eu pensando em mim, este mim não sou eu mas um objecto de eu. Eu concentrado em mim é o mesmo que eu concentrado numa cadeira, em Deus ou em Hegel. Eu concentrado em mim, como a própria palavra diz, vimo-lo atrás, terei de ser eu com alguém. Eu concentrado em mim sou eu com o objecto de eu. Para usar a linguagem de Hegel: O espírito se torna objecto por esse movimento de fazer-se um outro para si mesmo – um objecto para seu próprio si. Por mais voltas que se dê, não há forma de conhecer, ter consciência de sem negar. Não há forma de conhecer sem sair de si mesmo, isto é, não há conhecimento sem objecto. E, pronto, já disse. É isso mesmo, tão simples, tão básico que não há quem não saiba: não há conhecimento sem objecto; não há conhecimento sem aquilo que se conhece. Sem dúvida, a negação é parte integrante do processo de conhecimento, mas este último acontece imediatamente através do fenómeno da negação? Não. É preciso um outro fenómeno ulterior. Com a negação, o que acontece, como vimos, é que passa a haver consciência em nós daquilo que consciencializamos, isto é, passa a haver, em nós, aquilo que aparece. Passamos a ter em atenção, a ter diante de nós aquilo que aparece. Mas uma coisa apresentar-se-nos é insuficiente para produzir conhecimento. Se alguém me estende a mão e se apresenta, pronunciando o seu nome (eventualmente a sua profissão), isso não me dá um conhecimento dele, mas uma apresentação dele, uma consciência da existência dele, uma consciência de que há ele, ele há. Ou seja, produz-se em mim, a dupla negação de que falei anteriormente. Que é então necessário para que haja efectivamente conhecimento? A repetição, a permanência, ou, em linguagem mais hegeliana, sofrer uma acção contínua do desejo, isto é, o desejo deixa o mundo natural, da Natureza, para assumir o mundo da consciência, o desejo deixa de ser desejo para ser entendimento e, mais tarde, espírito. Ou seja, passamos de uma apresentação de algo ou para um conhecimento desse mesmo algo através da repetição trazida à consciência do objecto que queremos conhecer. Repetir a apresentação do objecto não é cumprimentá-lo todos os dias, mas trazê-lo continuamente à consciência de formas diversas. A esta relação que se estabelece entre um sujeito e um objecto, Hegel chama-lhe desejo. Por conseguinte, o desejo provoca que o objecto apareça, provoca que a consciência se dê conta dele, do objecto, e queira cada vez mais desse objecto (como é próprio do desejo). Mas o desejo, em Hegel é do mundo animal, apenas nos pode trazer à consciência a sensualidade do mundo; no desejo o mundo é o mundo sensível. Somente na acção o desejo, na direcção do mundo, se pode transformar em conhecimento. Realizar, agir é atirar para as coisas, para o mundo e trazer delas, de lá, a diferença que nos separa delas, isto é, entender em nós que o objecto é em nós. Este entendimento faz toda a diferença: é a consciência da consciência. Assim, não basta negar o objecto para que se produza conhecimento, a negação é a apresentação do objecto à consciência, o conhecimento é a continuação dessa apresentação através de um querer cada vez mais, cada vez mais de modo diferente até que nada mais haja para conhecer. A este cada vez mais chamamos acção ou realização. Por conseguinte, o que nos vai distanciar do plano natural, e trazer-nos até à consciência de nós mesmos, é a consciência da acção. Não é apenas a acção, nem a consciência, mas a consciência da acção, isto é, trata-se da negação da negação do positivo. A acção nega a consciência passiva do plano natural, animal, sensual e, depois, a consciência dessa acção é que produz conhecimento. Trata-se do regresso a si próprio depois de agir sobre o mundo. Obviamente, o objecto tem tanto mais para apresentar quanto maior for o desejo do sujeito. Podemos aqui citar, com toda a propriedade, o estafado verso de Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena se a alma não for pequena.” Ou seja, se o nosso desejo for grande, sempre há o que ver, sempre há o que conhecer. Ou, como se diz em relação aos papéis no teatro, não há objectos pequenos, há sujeitos pequenos.

Depois de ficarmos a saber de que modo se conhece, os mecanismos pelos quais uma consciência agarra algo, e de termos destacado o papel fundamental da negação em todo esse processo, e da negação da negação, passemos então ao que aqui nos traz com mais urgência: a relação entre o uma consciência de si e o outra consciência de si, isto é, a relação entre duas consciências de si. Apresentemos então a célebre distinção hegeliana na dialéctica do senhor e do escravo. Sempre que duas consciências de si se encontram, o que se passa é uma luta feroz para que uma delas se assuma perante a outra como sua senhora e, concomitantemente, a faça de sua escrava. Uma consciência torna-se escrava da outra pelo medo da morte, escreve Hegel. Mas que quer dizer aqui morte? O que é a morte da consciência? A morte da consciência é ver-se a si mesma como objecto e não conseguir voltar a si, não encontrar o regresso a si mesma. Uma consciência de si escrava não vive para si mesma, mas para outra.

De outro modo: uma consciência de si escrava é uma consciência de si presa à vida. Presa à vida indica, desde logo, medo à morte e, consequentemente, a inevitável queda na sua escravidão ou, melhor seria dizer, a óbvia não ascensão à sua libertação, à sua liberdade, ao não medo da morte. Uma consciência de si escrava não está em si, mas fora de si. Estar em si, para uma consciência é supressumir o plano natural. Supressumir é a casa da consciência. E é onde ela, enquanto senhora, gosta de estar, isto é, a consciência de si enquanto senhor é uma consciência em contínua supressão de si e do mundo. A consciência escrava anda na rua, isto é, vivendo num plano natural. Dorme e alimenta-se na rua, fora de casa, fora de si. A consciência escrava alimenta-se do que o mundo lhe dá, do que a consciência sua senhora lhe dá, mais nada. A consciência escrava é ir do trabalho para casa e de casa para o trabalho, beber nos intervalos que tenha e aproveitar ainda para ter mulheres (ou homens). Viver numa consciência escrava é viver sem perguntar por si, pela própria vida, não fazer do mundo todo um objecto para si. Para melhor se compreender estes dois modos distintos de apreender o mundo, por parte de uma consciência, imaginem que estão apaixonados por uma pessoa de má índole, e que sabem perfeitamente que essa pessoas não vos convém, mas apesar dessa consciência de si do outro, entregam-se a ela pelo prazer que ela vos dá, isto é, deixam de ser senhores de si para se tornarem escravos; o conhecimento deixa de ser importante, deixa de fazer efeito e passam a viver como se ele não existisse. Passam a ter medo da morte, medo da morte que foi revelado através do prazer enorme que essa pessoa vos dá, independentemente do conhecimento que tinham dela e do qual abrem mão. Aceitam ser escravos por medo da morte, por um desenfreado amor à vida, ao plano natural, sensual, animal da vida. O medo da morte é querer viver, é pensar que deixar o plano do sensual é caminhar para a morte. Quem tem medo da morte, afoga-se de vida, de sensual, de animal, e morre escravo. Ter consciência do que nos está acontecer e fazer disso um objecto, fazer de nós e da nossa vida um objecto é a vida de uma senhora consciência. No fundo, esta senhora consciência é, em última instância, a própria filosofia. Mas adiante, que não é isto que nos traz aqui. O que nos traz aqui é a Luísa e a Juliana, a senhora e a sua criada. Em sentido hegeliano, no início do romance ambas são escravas, pois ambas não têm consciência de si. Mas com o avançar do romance, com o avançar da trama, com a queda de Luísa isso não vai ser assim.

(Continua)

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