Êxodos

09/07/2017

[dropcap style≠’circle’]«Q[/dropcap]uem escreve está no exílio da escritura; aí é a sua pátria, onde ele não é profeta», anotou Blanchot em L´écriture du désastre e creio que ele entendeu tudo.
O escritor aí não é profeta, nem é emissário de nada e segue o sulco da humildade. Para ele não há outra pátria para além desse “espaço de suspensão” que o exonera da identidade ou que o desobriga de quanto não seja unicamente a porosidade e a fragilidade humanas, que o irmanam aos demais.
E que raio quer dizer “escritura”, e porque se obstinam alguns a preferir este termo a escrita? Simples, quando escrevemos com tema prévio (um cão-guia-para-cegos) exercemos a escrita e quando escrevemos no escuro, levados pelos ventos que despontam ali mesmo da página e urdem uma errância do pensamento, aí somos abobadados no domínio da escritura, e, neste caso sentimo-nos num êxodo feliz.

10/07/2017

Pato no tucupi. Especialidade de Belém do Pará, elaborada com tucupi, líquido de cor amarela extraído da raiz da mandioca brava, e com jambu, erva típica da região norte, diz o Wikipédia. O que importa é que a mandioca para se libertar de todas as suas toxinas tem de ferver sete dias. Com essa calda fervente no sexto dia faz-se o pato. O sabor é magnífico e o seu efeito físico nas beiças é inusitado porque estas ficam anestesiadas, como se tivéssemos saído do dentista após nos ter sido extirpados três dentes.
Foi o prato que o Adão inventou para anunciar à Eva: querida saímos do paraíso. O marido descobre que a mulher o engana e precisa de desabafar com um amigo. Vão ao restaurante e ele pede pato no tucupi. Depois conta a sua mágoa ronronando – é da anestesia. Das vezes que estive na Amazónia e que pude desfrutar deste petisco percebi o seu enorme potencial de sabedoria. O homem em queda no seu paraíso, numa guinada de resiliência, descobre logo esta receita – equivale ao consolo na filosofia.
Bom, mas Belém não tem só isso, nem histórias com botos que em noites de luar se convertem em homens trajados de branco e de borsalino e que seduzem e engravidam todas as mulheres, sem remissão. Belém, tem excelentes poetas e escritores, como o para-angélico Vicente Cecim, o António Moura, o Max Martins, o ensaísta Benedito Nunes. E ontem apresentaram-se-me mais dois, o Daniel da Rocha Leite e a Luciana Brandão Carreira, um casal simpatiquíssimo que conheci nos Poetas do Povo, ao Cais do Sodré.
Para a semana já tenho encontro marcado com outro grande escritor brasileiro, o Ronaldo Cagiano, que, com a sua esposa e igualmente escritora Eltânia André, resolveu romper com o país e mudar-se para Lisboa. E o Ronaldo já me prometeu apresentar um outro escritor brasileiro, de renome, na mesma condição. É o êxodo.
Entretanto, escrevo-me com o poeta e ensaísta de S. Paulo, Fernando Paixão, e conta-me que ele e a mulher Elaine Mores, ensaísta e especialista em Sade e literatura erótica, passaram meses em Paris e só agora voltaram a S. Paulo, antes de rumarem a Lisboa, em Setembro, por já terem cá apartamento e por só assim suportarem o país. É o êxodo.
O senhor Temer é que não parece nada preocupado pela deserção dos seus melhores patriotas porque pelos vistos não tem nem sentido da proporcionalidade, nem dignidade, desaparecida que lhe foi a probidade (- consta que ela fugiu com outro).
Para que não se diga que minto, transcrevo três poemas breves, cinzelados, de Luciana. Safra: eu em ti// úmida// somos o gole que deseja a fonte// as águas arrebentam na praia// ritmo e pulso// fluxos// tu em mim ; Aves migratórias: Migram as tuas asas até os meus pés./ Movem-se os contornos. / Revolvemos os nossos membros./ Minhas asas nas tuas mãos.//Híbrido caminho entre o céu e o pouso:/ sempre o mesmo movimento/ expansão e pausa.; Gume: Antes,/ desgastar o tempo/ puir seus fios/ sentir o veludo e o sagrado da espera/ arrematar o volume das sobras/ avivar o vermelho das artérias/ sem atrasar a hora/ ou perder o punhal/ com o qual o tempo se corta.
Abro entretanto o livro do Daniel, aguarrás, um poeta de voz plectórica e ao arrepio da sua expressão contida, lapidar, e descubro como as mais pequenas células poéticas podem conter uma virulenta leitura política. Veja-se este narcose: afogado// o teu silêncio ainda respira em mim. Agora pense-se no Temer.
Deve ser muito deprimente ser brasileiro neste momento.

11/07/2017

Estava combinado que eu iria à EC.ON (Escolas de escritas) do Luis Carmelo ler uns poemas meus no sábado, ao princípio da tarde, sessão a que se seguiria outra com o Pedro Mexia, o qual chegaria da Colombia nesse mesmo dia. A EC.ON havia previamente combinado com o Mexia para o princípio da tarde, mas devido ao problema da viagem troquei com ele. Ontem fui avisado que voltava tudo à primeira forma, que ele faria a sessão do princípio da tarde e eu o do fim da tarde. Porquê? Para ir à Colômbia o Mexia precisava de passar por Miami, e necessitaria de visto americano, o que actualmente é uma espampanante improbalidade. E acabou por não ir à Colômbia.
Ocasionalmente, acabei de ler um livro do filósofo de arte Arthur Danto sobre o Andy Warhol, que ele dedicou assim: para Barack e Michelle Obama e o futuro da arte americana. Coitado do Trump que nunca vai conhecer este tipo de reconhecimento. Ou sim, no dia em que declarar Guerra à Coreia do Norte há-de um chicano embriagado querer escrever com a urina na caldeira de uma árvore, Trump es mi hombre!, porque também ele, desempregado e curtido pelos fracassos, gostaria de ter a fanfarronada que lhe permitisse esquecer os vexames sofridos.
E em fanfarronada mais uma vez caiu, o dito, desta vez felizmente para nós. Ontem acordou com Putin sobre cibersegurança, hoje escreve um twitt onde refere que tal acordo “não pode acontecer”. Face a esta volubilidade prevejo um êxodo dos conservadores americanos. Proponho que se mudem para a Sibéria.

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