Manchete ReportagemHong Kong | Protesto pede direitos humanos, democracia e liberdade para Liu Xiaobo Andreia Sofia Silva e Sofia Margarida Mota - 3 Jul 2017 “Não queremos ser Macau” Milhares de pessoas juntaram-se no Victoria Park para mostrar que não lutam apenas pelo sufrágio universal. Nas ruas viram-se cartazes a apelar à libertação de Liu Xiaobo, Nobel da Paz, sem esquecer a necessidade de uma maior garantia dos direitos humanos e melhor distribuição da riqueza [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m pai a segurar o carrinho da filha que não conseguiu ter lugar num jardim-de-infância. Ambos têm ascendência indiana, mas assumem-se como naturais de Hong Kong. Uma criança com menos de dez anos que veste uma t-shirt que diz “Fight for Hong Kong” (lutar por Hong Kong). Uma mulher que segura um cartaz a pedir a protecção da ilha de Lantau contra o investimento chinês. O protesto realizado no vigésimo aniversário da transferência de soberania de Hong Kong para a China teve várias vozes e diferentes rostos. Foram defendidos os ideais da democracia e do sufrágio universal para a eleição do Chefe do Executivo, mas nas ruas houve outros pedidos que provam que, afinal, não está tudo bem no território. Foto: Sofia Margarida Mota Quem participou no protesto de sábado está longe de concordar com o discurso oficial de Xi Jinping, que defendeu uma implementação bem sucedida da política “Um País, Dois Sistemas” nos últimos 20 anos. Para Griffith Jones, membro do partido Socialist Action, a desigualdade social nunca foi tão gritante. Britânico, a viver em Hong Kong há 21 anos, Jones tece duras críticas à actual situação social e política que se vive em Hong Kong. “Temos visto uma grande quebra do respeito pelos direitos humanos nos últimos anos. Não somos localistas, não temos ilusões de que as coisas vão ficar melhores. A liberdade de expressão tem sofrido muitos ataques”, disse ao HM. Em Causeway Bay, os cartazes do Socialist Action chamavam a atenção para a necessidade de salários mais justos para todos, sem discriminação. Griffith Scott alertou que, em Hong Kong, um cidadão demora 20 anos a poupar dinheiro para a entrada de uma casa. “As possibilidades de termos um emprego estável, com bom salário, estão a diminuir. O sistema político tem sido dominado pelos grandes investidores do mercado imobiliário, com ligação ao próprio Executivo. Nos últimos 20 anos aconteceu exactamente o contrário daquilo que Xi Jinping disse, porque a protecção e a existência de relações próximas entre o Governo e esses investidores não mudou. Tudo está pior”, disse, desiludido. Hong Kong é, aos seus olhos, uma sociedade marcada pela discrepância. “Estamos a transformarmo-nos numa das sociedades mais desiguais do mundo. A liderança chinesa gosta de Hong Kong porque existe esta desigualdade, onde os ricos controlam tudo”, acrescentou o membro do partido. Joshua de regresso O protesto partiu do Victoria Park quando passavam poucos minutos das três da tarde. Uma hora antes, já a saída do metro, em Causeway Bay, estava totalmente congestionada, com a polícia a tentar manter a ordem. Joshua Wong, que foi colocado em liberdade na noite anterior, após a detenção de quarta-feira, subiu ao palanque e atraiu multidões. Adultos e até crianças, ajudados pelos pais, passavam e iam deixando notas de 200 e 500 dólares de Hong Kong na caixa de donativos do partido que fundou, o Demosisto. Idosos agarravam as suas mãos, como se a democracia de Hong Kong dependesse exclusivamente da sua acção. Ao HM, Isaac Cheng, um dos membros do partido, defendeu que a detenção do líder dos localistas “não teve razão de ser” e deixou um recado a Xi Jinping: “as pessoas de Hong Kong são racionais, só queremos lutar por um sistema mais democrático, em vez de ouvirmos apenas os líderes de Pequim. Somos racionais o suficiente”. As afirmações foram feitas em respostas às declarações do presidente, no dia anterior, em que apelava a mais racionalidade para a resolução dos problemas locais. Apesar do fracasso do movimento dos guarda-chuvas, em 2014, e da saída de dois deputados do LegCo (depois de terem ganho as eleições), não se notou uma diminuição da influência dos localistas no protesto de sábado. Foto: Sofia Margarida Mota Ainda assim, Griffith Jones acredita que o grupo tem uma certa “imaturidade política” de quem poderia ter sido mais influente, mas que deitou tudo a perder. “Isso resultou nalguma frustração. Mas o mais importante, além desse comportamento algo infantil, foi o número de votos que obtiveram no seu distrito, o que mostra a vontade de muitas pessoas.” “Não queremos ser Macau” Todos os grupos que participaram no protesto de sábado vendiam t-shirts e guarda-chuvas com fortes mensagens políticas. Todos eles aproveitavam para recolher dinheiro das pessoas que passavam, para garantir o seu próprio financiamento. Um membro do partido People Power gritava, de microfone em punho, que Xi Jinping não passa de um “grande, grande mentiroso”. Para ele, “o Governo chinês domina Macau e mudou o território em quase tudo. Por isso é que não queremos que Hong Kong seja como Macau no futuro”, frisou. Em Hong Kong há quem lute pela independência, enquanto outros querem que tudo fique como está, mas com a plena garantia da autonomia do território face à China, tal qual ficou decidido aquando da assinatura da Declaração Conjunta, em 1985. Raymond Chan Chi-chen, deputado do Conselho Legislativo (LegCo) pelo People Power, deixou isso bem claro. “Nós não queremos a independência, queremos sim mais autonomia”, disse ao HM. “Não tenho expectativas quanto ao novo mandato de Carrie Lam, porque não vai fazer nada que vá contra aquilo que o Governo Central quer.” A liberdade está ameaçada e, de acordo com Raymond Chan Chi-chen, a situação tem vindo a piorar. “Xi Jinping disse que a situação de Hong Kong é hoje melhor do que há 20 anos, mas não é isso que nós pensamos. A liberdade das pessoas diminuiu muito com o governo de CY Leung. Queremos uma autonomia plena, genuína. Nos últimos anos os valores básicos de Hong Kong foram quebrados”, apontou ainda. O Nobel e a libertação Em Victoria Park, Jim Kuok protestou ao lado do grupo que pedia a libertação do Nobel da Paz, Liu Xiaobo. Enquanto ajudava a levar um enorme cartaz preto, Jim, de 70 anos, disse gostar de Hong Kong e, por isso, estar ali para defender a liberdade. Os cartazes com os rostos de Liu Xiaobo e a esposa foram, aliás, uma constante ao longo do percurso, que só terminou junto ao LegCo. Lam Wing-kee, um dos cinco livreiros que, em 2015, desapareceram em condições misteriosas, usou da palavra no Victoria Park para pedir a liberdade de Liu Xiaobo, tendo apelado aos manifestantes para não desistirem de lutar pela democracia. A Civil Human Rigthts Front [Frente Civil dos Direitos Humanos], que todos os anos organiza o protesto, estimou o número de participantes em mais de 60.000, enquanto a polícia referiu 14.500, segundo a imprensa local. Os números foram inferiores aos do ano passado, com a organização a estimar cerca de 110.000 participantes e a polícia 19.300. À medida que o protesto começava, vários grupos de empregadas domésticas da Indonésia gozavam o seu dia de folga nas ruas, como é habitual. Não quiseram comentar o protesto que acontecia mesmo ali ao lado, como se fizessem parte de outro mundo. A China e a bandeira de Taiwan A meio do percurso surgiram dois grupos pró-China que, junto ao passeio, atiraram palavras de ataque aos milhares que seguiam na estrada. Jenny, nascida em Macau, foi para Hong Kong muito jovem. Hoje, acredita que a China não deve ser deixada de lado, porque a integração regional é fundamental. “A China é um importante aliado”, disse ao HM. Sobre os outros, disse apenas: “estão a ser influenciados pelos americanos”. No meio do protesto foram empenhadas várias bandeiras de Taiwan. Foto: Sofia Margarida Mota Os saudosistas pré-1997 As bandeiras do Reino Unido voltaram a ver-se 20 anos depois da transferência de soberania. Steven, com apenas 28 anos, referiu ao HM que o período da administração inglesa do território foi bem melhor do que o actual Executivo. Um cartaz estendido no chão chamava a atenção para o 119º aniversário da extensão da administração inglesa à zona dos Novos Territórios, enquanto apontava que o Governo Central não tem respeitado a Declaração Conjunta. Mais à frente, duas raparigas chinesas levavam duas pequenas bandeiras inglesas nas mãos. Foto: Sofia Margarida Mota Nove activistas detidos e libertados Pelo menos nove activistas pró-democracia de Hong Kong foram hoje detidos após confrontos com manifestantes pró-China, no centro da cidade, onde decorrem as cerimónias do 20.º aniversário da transferência de soberania. Joshua Wong, líder pró-democracia e dos protestos de 2014, foi detido pela segunda vez esta semana, indicou a agência noticiosa espanhola Efe. Na quarta-feira, Wong tinha sido detido, juntamente com 25 ativistas, durante uma concentração realizada na praça Bauhinia, no centro da cidade. No sábado, Wong voltou a ser detido, juntamente com quatro membros do partido que lidera, Demosisto, e cinco elementos da Liga dos Sociais-Democratas de Hong Kong, disseram fontes do Demosisto. As detenções aconteceram quando os activistas se preparavam para iniciar uma marcha até ao centro de convenções de Hong Kong, onde decorreram as comemorações do 20.º aniversário da transferência de soberania do Reino Unido para a China, com a presença do Presidente chinês, Xi Jinping. Ao local onde se concentraram os militantes pró-democracia chegaram centenas de manifestantes pró-China, com bandeiras do país, que rodearam os activistas. De acordo com testemunhas, um manifestante pró-China destruiu um dos cartazes do grupo pró-democracia, o que deu início aos confrontos. Depois de alguns minutos, a polícia efectuou as detenções de pelo menos nove activistas pró-democracia que foram conduzidos para os veículos policiais. Wong foi algemado, acrescentou a EfE. Não há indicação de detenções entre os activistas pró-China. Contudo, os activistas foram quase de imediato libertados, estando presentes na manifestação de Vitoria Park.