Ana Maria Pessanha, pintora: “O mar é um pouco uma obsessão”

Um convite para falar das suas obras foi suficiente para Ana Maria Pessanha começar a falar de si própria, num acto quase instintivo. Numa visita guiada, a pintora explica a sua forte ligação ao mar, a paixão pelos tons verdes e azuis, e a relação com determinados quadros. A exposição “O Mar” está na Casa Garden até finais de Agosto

Comecemos por este verso de Fernando Pessoa: “Olhando o mar, sonho sem ter de quê. Nada no mar, salvo o ser mar, se vê”. A poesia de Pessoa inspirou-a?

Não tanto assim. Procuro associar sempre a pintura com a literacia, e percorri escritores que fundamentassem o meu trabalho, como Pessoa e Sophia de Mello Breyner, para suportar um pouco a palavra com a imagem. Mas não foi Pessoa que me inspirou.

O mar está muito presente na literatura portuguesa. Que mar é este que vemos aqui nos seus quadros?

É muito pessoal. Sou descendente de madeirenses. A minha mãe, quando casou e veio viver para Portugal, ia todos os anos à Madeira. E desde miúda que viajava em barcos.

Quanto tempo demorava essa viagem?

Dois dias. Uma miúda de três anos num barco… O mar ficou muito no meu inconsciente, de tal maneira que é o meu tema preferido. É um pouco uma obsessão. Tenho dificuldade em estar longe do mar. Já estive duas vezes no estrangeiro, nos Estados Unidos e na Alemanha, uma estadia de 12 anos, e fazia-me falta estar perto do mar. Procurava os rios. Mas faltava o cheiro, o ritmo do mar. O ruído.

[Cabo Girão]

Esta é uma vista impressionante que há na Madeira, e que é mais impressionante porque tem uma espécie de miradouro com vidro. Quando me inspirei para fazer este quadro, o miradouro ainda não existia. Este quadro está relacionado com as minhas origens.

[Splash Out]

Este quadro é uma onda a rebentar.

Representa algo para si?

A minha pintura tem as raízes, mas não é uma pintura subjectiva, é visual. Passo muito tempo em Tróia, e fico muito sossegada a ver o mar e a esquematizá-lo. Então digamos que este quadro é uma fotografia esquematizada de uma onda.

Usa muito os azuis e os verdes, bem como os amarelos. Já pensou pintar o mar numa outra cor? Ou gosta de pintar o mar como ele é?

Também uso outras tonalidades. Mas esta é, de facto, a minha paleta de cores preferida. Tenho todos os tubos das tintas guardados em gavetas, e as minhas filhas dizem-me que me vão tirar as gavetas dos azuis e dos verdes. Para ver se eu tenho prazer a pintar noutras cores. Mas eu comecei a minha formação artística na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, onde estas cores estavam muito presentes. Trabalhei muito com essas cores, mesmo tendo estado alguns anos sem pintar. A minha paleta era azuis, verdes e cinzentos azulados. Pensei até que tinha perdido a mão nessa altura, mas as minhas filhas insistiram para eu pintar de novo. Peguei na paleta e essas mesmas cores vieram de novo. 

Por que esteve esse tempo sem pintar?

Estive na Alemanha e dediquei-me muito a educar os meus filhos. Nunca se consegue realizar pintura com alguma qualidade se não tivermos, pelo menos, cinco horas por dia com as telas. Não tinha tempo. Preparei tudo para elas serem boas alunas.

Quando finalmente pegou nos pincéis, voltou tudo.

Não me tinha esquecido de nada. Neste momento não só ensino pintura a futuras professoras e educadoras [é coordenadora do mestrado na Escola Superior de Educação Almeida Garrett], como dou lições particulares. Quando me colocam dúvidas, eu resolvo a dúvida no momento. Não me esqueci. A pintura é uma coisa muito interessante, porque mexe muito connosco, e com a memória. Comecei a pintar com 18 anos e nessa altura a memória retém tudo.

Consegue ensinar o que aprendeu e o que foi percepcionando?

Costumo dizer que não se ensina nada a ninguém se as pessoas tiverem mais de 40 anos. É mais complicado ensinar, as pessoas têm muitos estereótipos, querem pintar como Picasso e Van Gogh. A primeira coisa que digo às pessoas quando chegam ao meu atelier é: “Agora vamos ficar loucos”. Fazemos experiências.

[Sombras]

Esta pintura é feita muito da manipulação da tela, e só a partir de certa altura é que comecei a usar trinchas e pincéis. [Texturas] Aqui fiz uma fusão de líquidos que não são mexidos.

Este é algum mar em especial?

É um fragmento da onda, fiz um close up. E fiz aqui estas experiências com os líquidos que não se misturam.

Diz nas aulas “vamos ficar loucos”. Pinta-se a desorganização, mas a pintura tem também esse lado mais organizado.

Tem, e um lado racional. Se a pintura não estiver bem, mais vale colocar a tela no lavatório e começar de novo. Há muitas telas que não ficaram bem e não vieram para esta exposição. Não se pode pensar que o pintor fez todas as telas que estão expostas. Fez mais. Quando pinto uma tela levo-a para minha casa e olho para ela durante dois meses. Se não me fartar dela, está pronta para ser exposta.

Quem mais tem direito a esse olhar crítico?

As minhas filhas.

As mesmas que lhe queriam tirar as tintas.

Elas também são da área das artes, são designers. Não fiz nada para seguirem esse campo, a não ser ter-lhes comprado bons materiais de pintura. Elas têm uma crítica de arte distanciada, e por isso ajudam-me.

[O Mar]

Este quadro já esteve para ser comprado várias vezes, e eu não deixo.

É o seu preferido?

É. Acho que criei amizade em demasia com este quadro. Quando começo a pintar, digo para mim própria se o quadro é meu ou se é para uma exposição, e com este não devo ter dito isso. Há obras com as quais se cria uma relação afectiva.

Aqui tem quadros com cores vivas.

Foi quando as minhas filhas me disseram que iam roubar-me os pincéis. E eu disse: “Se calhar sou capaz de pintar sem azul e verde”. 

[Vinho Veritas]

Gosta destas telas tanto como gosta das outras?

Não é bem isso. Esta, por exemplo, tem uma realização muito bonita. É aplicação de folha de ouro numa tela de linho. Gosto muito, mas se lhe disser o que me dá prazer, é descobrir os tons de azul e de verde. Fiquei surpreendida no momento, mas não é tão lúdico. E acho que as pessoas, para pintarem, têm de saber dominar a técnica, a composição, e ter prazer no que estão a fazer. Para mim, pintar a sofrer não serve.

A pintura é vista como uma terapia.

Mas isso é sempre, seja uma pintura com dor ou com prazer. A Paula Rêgo, por exemplo, não sei se ela sofre quando pinta, mas ela de facto pinta coisas mais dramáticas. Deve ter prazer, porque trabalha muitíssimo bem o pastel. 

A Ana Maria pinta mais a paz, a serenidade?

A minha contestação social, digamos assim, não está associada à pintura, mas sim à participação na educação e na comunidade. Fiz sempre muito trabalho de voluntariado com crianças e ensino.

Qual a relação da sua obra com o trabalho de Henri Matisse?

Tenho uma admiração por ele. Tem um posicionamento social talvez parecido com o meu, porque ele dizia que a pintura devia ser para dar júbilo às pessoas. Terei prazer se as pessoas vierem aqui e passarem um bom momento. Criei alguma afinidade com Henri Matisse, mas a exposição minha que mais esteve associada ao pintor foi a que fiz há três anos. Essa era muito à base de papel e recortes, mas a temática era o mar. A de Matisse era as plantas.

Hoje é mais difícil ser pintora do que quando começou?

Não acho. Pertenço a uma geração que fez a sua formação na Faculdade de Belas-Artes do Porto onde António Barreto era um jovem assistente, anos antes de vir para Macau. Mulheres dessa geração que tentaram mostrar a sua pintura, não existem. Existem pintoras que deixaram Portugal, como Paula Rêgo e Vieira da Silva. Em Portugal era complicado, porque para vendermos um quadro tínhamos de vender aspectos afectivos ao cliente. Tínhamos de conceder determinadas atenções, o que não agradava à maior parte das pessoas. Ser artista mulher hoje é mais fácil, a sociedade está mais preparada. Aqui em Macau, graças ao contributo de António Barreto, vejo que as pessoas que vêem ver a minha exposição percebem o que estão a ver e o que estão a comprar. E isso é interessante, não é por acaso. Houve uma educação.

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