Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasAs mulheres em Francisco Huguenin Uhlfelder Paulo José Miranda - 16 Mai 2017 [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]as fotografias de Francisco Huguenin Uhlfelder (FHU), [refiro-me às fotografias de mulheres maduras] as mulheres aparecem diante de nós expostas ao esplendor do paradoxo humano: o lugar inalcançável da beleza. Digo: a intangibilidade da beleza surge-nos aqui mais intangível do que nunca. O que é que nos faz ficar tão angustiados face àquelas mulheres: a beleza que já foi, a beleza que ainda nos tenta ou reconhecermos que estamos vulneráveis à indagação desta manifestação omnipresente, à indagação do que é que vale a pena nesta vida? O mistério da beleza identifica-se nestas fotografias com o mistério da vida. Diante do limite extremo da beleza a desaparecer, a vida e a morte assumem uma consciência concreta, uma pedra de que não nos podemos desviar. A fotografia, mais ainda do que um texto, impede-nos de não ver o que está a acontecer na metáfora que o autor trabalha. Ainda que distraídos, ainda que não haja uma elaboração do problema que está diante dos nossos olhos, não é possível furtarmo-nos a ficar incomodados, como se estivéssemos mal sentados há muito tempo e na mesma posição. Porque exerce a beleza tanto poder sobre uma vida? Porque faz tanto frio (à vida que a contemplava e à vida que a transportava) quando a beleza se acaba ou se vislumbra o seu fim? A melancolia percorre o olhar destas mulheres que são convocadas a enfrentar a câmara. Em algumas das fotografias, consegue-se perceber muito bem o incómodo por parte de quem fica exposto, vulnerável à luz que há-de revelar esse exacto momento para sempre. É este “exacto momento” que inunda estes rostos de melancolia! Se a luz não fosse revelada, muito diferentes seriam as expressões nestes rostos. Saber antecipadamente que o “exacto momento” será revelado, será mostrado, é que introduz um arrepio existencial. Mais do que ser revelado ao mundo, o que arrepia é ser revelado ao próprio (pois o próprio toma como certo que o mundo o vê como a câmara o revela). Ninguém é como a sua revelação à luz de um “exacto momento” captado entre si e uma câmara, obviamente, mas quem se deixa fotografar sabe que vai enfrentar muito mais a imagem que os outros vêem de si, do que aquela que vê frente a um espelho. O que FHU capta na sua câmara, no fundo, é o medo. O medo de não se ser quem se é. O medo, por parte de quem é fotografado, de não se ir reconhecer na imagem que tem de si mesmo. Estas mulheres, outrora indiscutivelmente belas, sentem medo de não se encontrarem na revelação. FHU capta esse arrepio existencial, que é o medo de, ao nos olharmos na revelação de uma fotografia, ficarmos diante de um desconhecido. Pode acontecer muito pior ainda: ficarmos diante de quem nos recusamos a ser (um desconhecido que não queremos aceitar que somos). Mas também pode acontecer algo muito mais simples: apenas não querermos ser lembrados da imagem que somos (embora geralmente estes recusem enfrentar a revelação). O que leva então estas mulheres a enfrentarem a câmara, exporem-se ao medo? Para além das diferentes circunstâncias e dos diferentes dias de cada uma das mulheres fotografadas, isto é, para além da subjectividade, importa tentar perceber a objectividade da exposição à luz da câmara. Nesta procura de razões objectivas, adiante-se três: porque sabem que ainda são belas; porque querem uma confirmação de como o mundo interpreta a sua beleza; porque querem afirmar as suas próprias vidas acima da imagem que o mundo possa ter delas. A quem sabe que é bela, a câmara não capta um ar de melancolia, nem causa arrepio nenhum. Só que a situação aqui não é “sabe que é bela”, mas antes “sabe que ainda é bela”. Este “ainda” muda tudo. Quem tem consciência de um “ainda”, tem um arrepio pela existência acima. Num jantar, entre apreciadores de vinho, quando se ouve a frase “ainda há vinho”, ouvem-se sem dúvida duas coisas contraditórias: isto está bom, por enquanto, mas vai ficar mau. E, se usarmos como exemplo aqueles que cheiram cocaína, torna-se mais visível: se ao “ainda” não se juntar “há muito”, eles pensam imediatamente que as coisas estão a ficar mal. Mas o exemplo que prefiro vem do desporto. Se, num jogo de futebol, uma equipa precisa impreterivelmente de marcar um golo e um dos seus jogadores ou adeptos pergunta o tempo que falta para o jogo acabar e a resposta é “ainda faltam cinco minutos”, esse ainda não traz muita alegria (embora haja esperança, por isso se justifica responder “ainda”). “Ainda”, enquanto advérbio de tempo, põe-nos imediatamente reféns da duração, da medida da duração daquilo que o “ainda” acusa. O arrepio advém de, no fundo, a consciência nos dizer: isto está a acabar. No caso das mulheres das fotografias: a beleza está a acabar. No caso de quem fica diante das fotografias: a vida está a acabar. Se as mulheres destas fotografias sentiram um arrepio mais próximo do jantar dos apreciadores dos vinhos ou do adepto da equipa de futebol, provavelmente variou dependendo de cada uma delas e do ânimo subjectivo desse dia em frente da câmara, mas do “ainda” e do seu arrepio não se livraram. Por outro lado, a confirmação da beleza que essas mulheres possam ir buscar à revelação, por si só, mostra a situação em que se encontram as suas consciências: necessidade de confirmação. Quem está imerso numa necessidade de confirmação, do que quer que seja, está imerso em águas desconfortáveis. Necessidade de confirmação é muito diferente da necessidade de ouvir o que já se sabe, mas que se gosta de ouvir continua e repetidamente (o exemplo da mulher e da rapariga que necessita de ouvir que é bela, que necessita de ouvir o mundo repetir o que ela tão bem sabe). Necessidade de confirmação acerca de si, pois é exactamente do que se trata, só pode trazer também um valente arrepio pela existência acima. Por fim, as mulheres destas fotografias enfrentaram a câmara para enfrentar o mundo. Para mostrarem ao mundo que são maiores do que a beleza. Maiores do que a beleza que já foram (ou ainda são), maiores do que a expectativa de beleza que o mundo tem delas. Pode ser. Mas quem é que tem necessidade de se afirmar acima da beleza? Não é seguramente a mulher que nunca a teve, mas aquela que a teve ou que sente que está prestes a perdê-la. Afirmar-se diante do mundo (através da revelação) acima da beleza, só lembra a quem julga ser necessário essa afirmação. Uma mulher que nunca foi bela sabe que não precisa afirmar-se acima da beleza: ela é acima da beleza (pode-se também dar o caso de se sentir abaixo da beleza). Mas então porque é que estas mulheres se expuseram ao medo? Pela beleza. A mesma razão por que nós nos expomos à vida. Vemos agora mais claramente porque é que estas fotografias, que parecem simples retratos, nos perturbam tanto. Mesmo que a beleza desapareça do rosto, do corpo de uma mulher, nunca desaparece totalmente. Por vezes, fica apenas uma suspeita; outras vezes, um desejo de que ela ainda não tenha acabado; outras, uma memória, um modo de vida antigo que ficou incrustado nesta mulher de agora e que, tal como um vestido, não lhe assenta bem. O modo como os deserdados se comportam em relação à fortuna perdida são muitos, mas em nenhum desses modos vamos encontrar o esquecimento da fortuna perdida (da fortuna que foi interrompida). Só quem doa aquilo que herda ou pode herdar (recusando a herança) é que não tem a memória povoada por esse bem. Em verdade, a beleza perdida nunca se perde, acabamos é por deixar de vê-la. Mas ela continua lá, nestas mulheres, a fazer-se sentir sem uma luz que a traga até nós. Precisamente este deixar de se ver ou poder vir a deixar de se ver (a beleza que continua na memória) é que causa o arrepio existencial que a câmara de FHU capta exemplarmente. Como é possível não nos apaixonarmos por estas mulheres, pelos retratos que aqui mostram estas mulheres? Apaixonamo-nos pela beleza que julgamos perdida para sempre; apaixonamo-nos pela beleza que ainda resta; apaixonamo-nos pela dor que essas mulheres transportam, no receio de irem da luz às trevas; apaixonamo-nos por aquilo que fomos, por aquilo que somos ou por aquilo que seremos, consoante o caso, a idade e a sensibilidade de cada um dos observadores, ao reconhecermos a nossa vida na vida retratada dos nossos semelhantes, na vida retratada destas mulheres. Mas a paixão cai ainda mais longe: neste trabalho de FHU, apaixonamo-nos pela existência. Apaixonamo-nos pelo humano, comprimido pela totalidade do tempo de uma vida. Porque, como já vimos, este “exacto momento” só é exacto porque, para além dele mesmo, arremessa ainda a nossa compreensão para um antes e um depois do momento representado. Mas frente a estas fotografias, a nossa compreensão vai ainda mais longe: frente às retratadas, neste trabalho do fotógrafo, a compreensão arremessa-nos contra nós mesmos.