Intervalos

05/05/17

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a Mongólia, o sonhador pode sonhar por um outro, ou até sonhar por numerosas outras pessoas. Leio e pasmo.

Aí estava um negócio – fosse eu um xamã de igual qualidade.

De qualquer dos modos esta é a única explicação que encontro para um sonho que me perseguiu durante anos, ao ponto de se ter cunhado como uma recordação que eu reportava ao vivido. Durante uma década estive convencido de que quando me casei com a minha primeira mulher tínhamos ido viver para uma casa emprestada, na Avenida Todi, em Setúbal, até a nossa, oferecida pelos pais da noiva, estar pronta.

Era um apartamento, num primeiro andar de grandes janelas rasgadas – a casa fora em tempo adaptada a loja –, um T-0 com kitchnet. O facto é que aí vivi – seis meses – o único período de pacificação do casamento, ternos, unidos, degradando-se tudo quando nos mudámos para a nossa casa.

Anos depois, sempre que voltava a Setúbal, palmilhava a avenida, procurando a casa, em vão. Todavia, eu tinha presente cada pormenor do seu interior, a mesa redonda de mogno com flores de marfim embutido, os cadeirões com almofadas vermelhas, a estante de boa madeira que em noites ímpares acordava em mim sonhos de larápio, a Clara no balcão da cozinha a rechear as beringelas, o tapete com dois peixes em 69… A avenida é que teimava em desmentir-me.

Quando eu e a minha ex-esposa nos pudemos reaproximar sem dano ou atribulações, perguntei-lhe pela casa, e jurou-me que fôramos para a casa nova no próprio dia do casamento.

Ainda não estou convencido, apesar de a partir de hoje ter por certo que um sonho de outrem me visitou e que não passamos do atelier de alguém.

07/05/17

Bom, só estão volvidas duas semanas sobre o 25 de Abril e por isso aproveito para contar uma das suas engasgadelas ocultas menos conhecidas.

Nessa madrugada os tanques saíram dos quartéis para irem tomar os Ministérios, e – ao descerem a via magna que é a Avenida da Liberdade em Lisboa – paravam nos semáforos.

Foi uma Revolução em que os tanques – o respeitinho é muito bonito! -, estacavam nos semáforos.

Nada define tanto os portugueses como esta oscilação, ou antes esta dupla injunção de carácter: o medo à autoridade foi-lhes de tal forma inculcado que mesmo no curso de uma revolução se res-peita escrupulosamente a lei.

Parece-me que os portugueses eram na generalidade, e supinamente, norte-coreanos.

O extraordinário e incomodativo filme de Susana Sousa Dias, Natureza Morta, que passei esta semana aos alunos, mostra o júbilo profundo com que as massas ignaras se empanturravam quando eram visitadas por Salazar ou pelo cardeal Cerejeira: vê-se no lampejo dos olhos, na adesão de cada poro, o fascismo confortava-lhes em festas e ritos a irrelevância quotidiana, o sentirem-se um «zero à esquerda»; era um carnaval investido de beatice, e onde cada cidade competia com o seu santo. Os portugueses moviam-se como espectros sequiosos de alegria.

Há uma geometria suplicante, invariável, naqueles olhares de júbilo que associo à esquadria sem falhas com que se marcha nos dias de desfile na Coreia. É inimitável o que consegue a cegueira das massas, sendo por isso inesquecível.

No dia 26 de Abril já ninguém era fascista, só os Pides (os esbirros da polícia política de Salazar), e mesmo esses foram rapidamente perdoados.

Quarenta anos a serem malhados pelos torcionários da Pide, ou a serem afeiçoados pela sílabas amendoadas da catequese, deram aos portugueses “a visão” de que eles não passavam de “rapazes desviados”, a merecerem redenção. E por isso, na generalidade, os pides nem sequer foram julgados. Os que fugiram, na maior parte para o Brasil, não tardaram a regressar e a encontrar acolhimento, como empresários ou especialistas da segurança.

09/05/17

Vagueio, intervalado pelo mundo, acácias vermelhas, libelinhas, por um “tô a pedi” tatuado nas costas, e pelo ronrom das viaturas, plácidas como a tarde. E seguindo-me o passo abranda um jipe, novo, enquanto se baixa um vidro.

– Doutor… – Uma jovem bonita, que apesar de familiar me escapa à lembrança.

Sorri e rebola os olhos – Sou eu…

Gaguejo – Foste minha aluna?

Sim. Diz-me o nome. Faz-se-me luz, mas conhecera-a de cabelo rapado e não com umas extensões à Beyoncé… e sem aparelho nos dentes.

– Já sei. Foste minha aluna de…

Adianta-se: – Do corpo e quê, quê, quê e tal e tal…

O tal e tal é da sua autoria, o quê, quê, quê… é um bordão de linguagem das gentes da Beira. – Estás muito diferente… – Observo, e provoco – E vê-se que estás bem na vida.

– Não é? – Concorda ela, e justifica – Sou doutora!

– Também eu, mas não ando num carrão destes…

– O profe? O profe só gosta de ler…

– E tu… – gracejo – continuas a aprofundar o quê quê quê quê, ou deixaste-te de leituras?

– Xii, professor, não tenho tempo para me coçar e tenho um niño

– Falamos espanhol?

– Não é? É do trabalho, trabalho numa empresa espanhola…

– Boa. E qual é a área da empresa?

– Consultoria e quê, quê, quê, quê… Repete, accionando a ignição: – Então vai lá à tua vida…- Rebolo os olhos para o interior do carro, para que ela perceba que aprovo o fausto de um consultor – Gostei de te ver… Olha, já agora, que achaste das eleições em França?

– Xiii! França é maningue longe. Aquilo tem alguma coisa a ver com a nossa realidade, profe?

– Talvez quê, quê, quê…- Replico, pensando – Estamos tramados Senghor, para eles não há nem a mosca nem teia…

Ela mete a mudança e acena, feliz.

– Sucessos… – desejo-lhe. Um txopela segue-a, em tosses. Quê, quê, quê, tropeça ele, como quem diz.

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